A geração do sacrifício

24/10/2018 às 19:58.
Atualizado em 28/10/2021 às 01:24

Escritor amigo, que de cá se despediu após sofrer muitos apuros, o último dos quais um sequestro, à mão armada, com a esposa, em São Paulo, comenta lá de Portugal: “vamos acompanhando apreensivos a situação eleitoral no Brasil que, pelo que tudo indica, vai caminhando para um obscuro e um abismo. Não pensei viver para chegar mais a um momento de retorno ao autoritarismo”.

Nos momentos difíceis pelos quais a nação vai transitando, é comum e útil ouvir personalidades que, por sua competência e conduta isenta, tenham condições de merecer a confiança nacional. É o caso, por exemplo, de Carlos Mário da Silva Velloso, ex-ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ex-professor de direito constitucional na PUC Minas e da Universidade de Brasília e autor de mais de vinte livros.

Há mais de dois anos, o professor Velloso, também da Academia Mineira de Letras, expressou-se sobre o redemoinho político, econômico, moral, social e ético em que a nação se debate. Sobre a situação vigente, acha ele: “realmente, o Brasil vive fase conturbada. Temos crise política, governo praticamente parado, economia derretendo, desemprego crescendo, indústria encolhendo, lojas fechando, inflação avançando”. Isso era março de 2016. Presentemente o quadro é outro, embora ainda alvo de severas críticas. Sobre o foro privilegiado, acha que “é algo não condizente com a república. Considero ofensivo aos princípios republicanos. Quando estava no Supremo, eu já o classificava como uma excrescência”.

Para ele, “não há, propriamente, uma judicialização da política. O que há é uma classe política fraca, um Legislativo que se omite e parlamentares levando questões políticas à apreciação do Supremo”.

Mais adiante, acrescenta: “veja-se o caso do Supremo. Ele é a Corte Constitucional. Entendo que, como tal, deveria estar julgando apenas as ações do controle concentrado e os recursos extraordinários. Não deveria ter competência criminal, a não ser para o julgamento dos chefes de poderes. Só a partir da Constituição de 1988 é que os princípios da impessoalidade e moralidade ganharam as galas de princípios constitucionais. A Constituição de 1988 trouxe belas inovações, além disso. Eu me lembro de, quando juiz em Minas, a maioria dos delegados de polícia eram oficiais reformados da PM ou leigos que ficavam sob o guante dos chefes políticos locais. A partir de 1988, todos os delegados, sem exceção, devem ser bacharéis em direito e admitidos por concurso público. Ganharam autonomia, se não total, ao menos suficiente para atuar com dignidade e independência. A atuação da Polícia Federal e, em alguns dos Estados, da Polícia Civil, tem sido ótima. E o que dizer do Ministério Público, seja o federal, sejam os estaduais? Enfim, o que é preciso dizer é que estamos, com a Constituição de 1988, construindo uma consciência ética no país. As leis de improbidade administrativa, anticorrupção, da ficha limpa e a da Transparência dos atos da administração são exemplos do que digo. As movimentações populares contra a corrupção, em favor da ética, são edificantes”.

Deprende-se que, a despeito das resistências, da ação nefasta e criminosa em áreas administrativas, da constatação de novas formas de ilicitude, da lentidão nas investigações e nos julgamentos, nem tudo está perdido. Há erros a corrigir, crimes a apurar e punir, mas o essencial é que o povo deste país esteja consciente de que não podemos extinguir o halo de democracia que persiste. A hora é de luta, o próximo período de governo será desafiador, mas se terá de pensar em termos de mais de uma geração. A atual pagará o sacrifício, mas o mal não poderá ser banalizado e procrastinado indefinidamente.

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