Pobre e mulato

23/04/2018 às 06:00.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:26

A inauguração das novas instalações da Clínica de Neurologia e Neurocirurgia da Santa Casa de Belo Horizonte, no último dia 18, demonstrou que a filantrópica vai removendo obstáculos à prestação de serviços à população. Na oportunidade, o provedor Saulo Coelho e diretores da instituição descerraram a placa dando o nome, à renovada unidade, de Carlos Batista Alves de Sousa – que integra o conceituado trio de irmãos dedicados a esta área médica, já falecidos: José Gilberto e Atos.

Lembrou-se, na ocasião, que a neurocirurgia brasileira comemora, em 2018, seu nonagésimo aniversário, especialidade instituída por iniciativa de Antônio Austregésilo, seu pioneiro, assim como do estudo dos distúrbios do movimento. Pois neste nosso tempo, em que tanto se fala dos constrangimentos, humilhações e provações por que passa a população dita de cor, é bom contar quem foi esse ilustre médico patrício.

Nascido em Recife, de origem humilde, mulato e portador de tartamudez, desde criança apresentava alguns tiques que serviam para provocar chistes. Não se intimidou. Dedicou-se aos estudos, sem se magoar sobre o que percebia em torno de si. Ele próprio confessou que estudava como um “escravo”. Já naquela época, circulava a ideia de desigualdade social, em que cadeia se destinava só a pretos, pobres e prostitutas, o que tanto estigmatiza esse segmento até hoje.

Vê-se que o inabalável propósito do mulatinho de Recife venceu todos os percalços, tanto que, aos 16 anos, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Formou-se em 1899, defendendo a tese “Estudo clínico do delírio”. 

Transposto o século, Antônio Austregésilo conseguiu novos êxitos em sua carreira sem sofrer solução de continuidade até falecer, aos 84 anos. Após diversas tentativas frustradas para ingressar na vida acadêmica como professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mesmo mediante concursos, foi indicado pela Congregação para professor substituto de Clínica Médica, Patologia Interna e Clínica Propedêutica.

Não conseguiu indicação para professor assistente e, por duas vezes consecutivas, foi derrotado em concurso público. 

Venceu, todavia. Primeiro catedrático de neurologia da hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, visitou os mais prestigiados serviços de neurologia do mundo, foi um dos precursores da psicanálise, colaborando com muitas publicações científicas, principalmente na França. 

Como se pouco, devotou-se ainda à literatura, com ensaios e um romance, este não bem acolhido pela crítica, se bem que sua contribuição às ciências neurológicas já lhe perenizassem o nome e a produção. Donde se conclui que preto tem, como sempre teve, lugar na sociedade, precisando de mais espaço.

Na literatura brasileira, já há Machado de Assis e Cruz e Sousa, o poeta que faleceu na cidade mineira de Antônio Carlos. E tantos outros, que nos orgulham no campo da ciência, das letras, das artes.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por