A desumanização que a mulher negra conhece muito bem

11/01/2022 às 21:40.
Atualizado em 18/01/2022 às 00:52

A cena é estarrecedora. Por isso, recuso-me a descrever aqui a condução violenta do médico Renato Kalil e os xingamentos proferidos por ele durante o parto da digital influencer Shantal Verdelho. E olha que ela é branca, detentora de poder aquisitivo e famosa. Já parou para imaginar o que mulheres negras, principalmente as pobres, passam durante uma gestação? Se você nunca refletiu sobre esse assunto, saiba que existem inúmeros estudos científicos que apontam que a violência obstétrica atinge majoritariamente a mulher negra. No Brasil, esse índice chega a quase 70%.

O estudo intitulado “A violência obstétrica praticada contra mulheres negras no SUS”, desenvolvido por pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF), revela a seguinte realidade enfrentada por gestantes negras: “Mais estereotipadas, as mais excluídas, aquelas que sempre ‘suportam mais dor’, segundo premissas racistas disfarçadas em científicas, são as mais violentadas, as que, por suportarem mais, não recebem anestesia (ou recebem demais), são as que mais morrem. Suas narrativas e vontades são negligenciadas pelos profissionais de saúde - e pelas pesquisas. Suas mortes são possivelmente evitáveis. Elas são perseguidas, esterilizadas, criminalizadas e mortas”, afirmam as pesquisadoras Paula Land Curi, Mariana Thomaz de Aquino e Camilla Bonelli Marra.

Não é coincidência que a taxa de mortalidade materna entre mulheres negras é muito maior que o índice entre gestantes brancas. Dados do próprio Ministério da Saúde mostram que 62,8% das mulheres mortas durante o parto são negras. Um outro estudo, realizado pela pesquisadora Jussara Francisca de Assis, aponta que, enquanto o registro de óbitos aumentou entre gestantes negras, o número diminui entre gestantes brancas. Esses números materializam o racismo e esfregam na cara da sociedade que, como um vírus, o racismo ocupa todos os espaços, atacando, adoecendo e matando a população preta.

No caso da violência obstétrica, é necessário entender que ela pode ocorrer em qualquer fase da gestação, e não somente no momento do parto. Conceituada como abusos sofridos por mulheres ao buscarem os serviços de saúde em decorrência e ao longo da gestação, na hora do parto, no nascimento e, até mesmo, no pós-parto, a violência obstétrica reúne uma série de maus tratos: violência física ou psicológica, agressões verbais, recusa de atendimento, negligência, intervenções e procedimentos médicos não necessários. A violência obstétrica não se reduz ao exercício profissional dos trabalhadores da saúde. Falta de infraestrutura e outras condições inadequadas de clínicas, de hospitais e de todo o sistema de saúde podem corroborar um quadro de violência obstétrica.

Infelizmente, numa sociedade racista, é mais fácil as pessoas se sensibilizarem e as  autoridades agirem quando uma violência dessa magnitude atinge uma pessoa branca. Mas eu espero a mesma sensibilidade em relação às gestantes negras. É oportuno, inclusive, que, sendo ano eleitoral, ampliemos o debate dessa pauta, estabelecendo o devido recorte racial que a problemática exige. Já temos instituída, desde 2009, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Mas já passou da hora de transformar as ações previstas na política e em outros atos normativos em ações efetivas e concretas na vida de cada brasileiro negro deste país.

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