Descansar também é um ato de resistência

22/11/2021 às 21:20.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:18

Estou de férias! Como é bom desfrutar do descanso depois de um ano de trabalho, não é mesmo?! Mas esse direito de todo trabalhador aguça em mim diversos gatilhos. Vou explicar por quê. Recentemente, deslizando o feed do Instagram, deparei-me com uma entrevista da atriz e cantora Zezé Motta concedida, em 1984, ao jornalista Pedro Bial, que faz as seguintes perguntas: “O que acontece a um negro, a um brasileiro, que, de repente, faz sucesso e ascende socialmente? O que acontece na cabeça e na vida dessa pessoa?”. A atriz, que desafiou o racismo estrutural num período ainda mais hostil para as pessoas negras, responde: “O primeiro problema que eu tive foi uma culpa enorme por estar tendo dinheiro pra morar bem, comer bem, vestir bem. Foi uma coisa muito difícil pra mim”.

Salvei o vídeo dessa entrevista - que está no perfil oficial da atriz (@zezemotta) - para revê-lo toda vez que eu vivenciar esse mesmo sentimento de culpa. Arrisco dizer, inclusive, que toda pessoa negra com o mínimo de consciência racial que conquista um poder aquisitivo melhor experiencia essa autopunição. Há diversas razões para isso. Contudo, escolho elencar aqui - o que eu entendo ser -  os meus motivos.

Primeiramente, é preciso compreender que, aproximadamente, 80% da população negra no Brasil concentram-se na faixa que classifica o grupo como “extremamente pobre” ou “pobre”, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Assim, é muito difícil, para mim, saborear plenamente os frutos que conquistei sabendo que, no Brasil de maioria negra, aproximadamente 60% dos negros passam fome e que 2,5 milhões de negros estão desempregados.

Outro ponto diz respeito à opressão da sociedade racista, que deslegitima o direito da população negra ao ócio, ao descanso e ao lazer. Enxergo mais essa violência como resultado da escravização dos negros, que eram submetidos a uma média de 20 horas de trabalho forçado sem uma alimentação adequada e expostos a torturas e castigos diversos.  Não são raras as vezes que a angústia aparece quando não estou fazendo nada ou quando estou me divertindo. A busca por ser a melhor para ter o “direito” de ocupar espaços fez com que eu, por anos, trabalhasse e estudasse mais de 12 horas por dia, incluindo fins de semana e feriados. Várias foram as madrugadas que passei em claro para vencer uma corrida racista, injusta, cruel e extremamente prejudicial à saúde física e mental.

Vi meus pais fazerem o mesmo. Minha mãe como faxineira e meu pai como pedreiro. Trabalharam horas a fio por anos para tentar conquistar uma vida melhor, comprar uma casa e dar um futuro aos filhos. Na viagem que fiz ao Rio de Janeiro nestas férias, levei meu pai, natural do quilombo Gerais Velho, localizado na cidade de Ubaí, no norte de Minas Gerais. Observei, em diversos momentos, o desconforto dele em ambientes que não está habituado a frequentar. O desconforto era por causa dos  preços que pagamos para nos locomover na cidade, para visitar monumentos turísticos, para consumir nos bares e restaurantes. Toda hora ele soltava “Você gasta dinheiro demais, minha filha!”, “Que caro!”, “Isso tudo?”. Mesmo sabendo que hoje tenho condições de custear uma viagem dessa, imagino que ele pense que não seja “certo” gastar dinheiro com essas coisas.

Não só é certo como é necessário gastar dinheiro, sim, com ocasiões e coisas que nos oportunizam descanso, lazer e diversão. O que não é certo é não termos as condições propícias para usufruir a vida, que não deve ser reduzida ao trabalho. E nesse contexto, a população preta precisa ser amparada por políticas públicas para que exerça, de fato, esse direito, e sem culpa.

Assim como Zezé Motta, também encontrei na terapia uma forma de enfrentar essas e outras problemáticas decorrentes do racismo estrutural. Conhecer como outras pessoas negras trabalham esse sentimento de culpa e lidam com os traumas que o racismo provoca contribuem, ainda, para o meu empoderamento, para a expressão de toda a minha potencialidade e, sobretudo, para a aceitação das minhas fragilidades e incoerências. Estou aprendendo a resgatar a minha própria humanidade.

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