Jesus negro incomoda demais

21/12/2021 às 22:46.
Atualizado em 29/12/2021 às 00:35

O longa-metragem Marighella, do diretor Wagner Moura, foi o filme brasileiro mais visto neste ano. Mais de 300 mil pessoas foram aos cinemas assistir à história de Carlos Marighella, ex-deputado, poeta e um dos principais guerrilheiros que lutou contra a ditadura militar no Brasil. Apesar da importância dessa história e da potência do filme, sobretudo no contexto atual, minhas reflexões se direcionarão para uma cena que não saiu da minha cabeça: o diálogo entre os personagens frei Henrique e Marighella sobre a cor de Jesus.

“O Jesus ‘branco’ foi pra justificar a colonização, pra ficar cômodo pro escravocrata. Imagina o constrangimento de um Jesus negro no Brasil colônia. Você percebe? Mas na história, na geografia, no tempo e espaço, na pele e na alma, Cristo é negro. Carrega nossa dor e nossa esperança”, disse o ator e pastor Henrique Vieira na cena. Fiquei impactada com a lucidez e a precisão de cada palavra, que ficou ecoando em minha cabeça por muitos dias desde o dia que assisti ao filme.

Aproximando-se da data que simbolicamente marca o nascimento de Jesus, voltei a me lembrar da explicação dada pelo religioso e comecei a pensar nos racistas de alma cristã que vão celebrar o Natal. É fácil identificá-los. Eles vão dizer: “Que importância tem se Jesus era preto ou branco?”, “Onde fala na bíblia que Jesus era negro?”, “Lá vem. Começou. Ninguém sabe a cor de Cristo. Parem.” ou “Vocês veem racismo em tudo, a cor da pele nada significa na mensagem de Cristo”.

O racista de verdade vai ignorar todo um consenso histórico e científico que assegura que Jesus era um judeu do Oriente Médio e que possuía a pele escura, sendo mais negro do que branco. As tentativas de deslegitimar a reivindicação da cor negra de Jesus denotam o desconforto de muita gente em adorar um Deus negro. Ser racista e reconhecer um Jesus negro seria, senão um paradoxo, o auge da hipocrisia e do constrangimento. Por isso, para muitos cristãos, a discussão do tema não tem valor.

Talvez, não seja de fato importante discutir se Jesus era negro ou branco, porque, verdade seja dita, não existem mais dúvidas quanto a isso. Precisamos debater, na realidade, o incômodo que emerge ao considerar Jesus negro e romper os silêncios que preenchem as instituições, inclusive as religiosas. O Natal é, para mim, o momento perfeito. Quem sabe, imbuídas de sentimentos fraternos, como o amor, a solidariedade, a compaixão e a união, as pessoas possam estar abertas a reconhecer a estrutura racista que molda toda a sociedade e que marginaliza, estigmatiza, adoece e mata a população negra no Brasil e no mundo?

Não há dúvidas de que Jesus é o Senhor dos pobres, dos marginalizados e dos oprimidos. Então, Jesus é um jovem negro que morre a cada 23 minutos no Brasil. Jesus é cada uma das 20 milhões de pessoas negras que passam fome no nosso país. Jesus é cada mulher negra vítima de feminicídio. Jesus é cada pessoa negra que todos os dias enfrenta o racismo em todos os espaços da sociedade. Por tudo isso, para mim, celebrar o nascimento de Jesus é celebrar a fé, a coragem, a força e a resistência de todos os meus ancestrais.

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