Uma pandemia chamada racismo

29/11/2021 às 20:21.
Atualizado em 08/12/2021 às 01:10

Se tem uma coisa que a covid-19 já provou é que a máxima “cada um por si e Deus por todos” não é o caminho para combater a pandemia. Em um mundo globalizado, não adianta um país apresentar altos índices de vacinação e outros não. Não só a variante ômicron, identificada recentemente pela médica sul-africana Angelique Coetzee, mas todas as demais cepas do coronavírus são a chave para entendermos que enquanto as taxas de transmissão viral estiverem altas poderemos ficar presos em um eterno looping.

Quase dois anos se passaram desde o surgimento da covid, e o mundo ainda não aprendeu a lição. A gente já sabe que – no momento – só a imunização do mundo todo é capaz de pôr fim à pandemia. Apesar disso, muitos fecham os olhos para o cenário de enfrentamento da covid-19 na África, o segundo continente mais populoso do mundo, com os seus 1,2 bilhões de habitantes e seus 54 países.

O continente africano apresenta a mais baixa taxa de vacinação contra a covid-19 em todo o mundo. O índice não chega a 10% da população. E para além da vacina, são vários os fatores que comprometem a ampliação da campanha de imunização no continente: carência de tecnologia, recursos logísticos, capacitação de pessoal, conscientização e até falta de seringas. Na verdade, a pandemia escancara as dificuldades de um continente historicamente e politicamente explorado, colonizado. E nesse contexto, não há como não mencionar o tráfico de 10 milhões de africanos para as colônias europeias. Estudos apontam que os países de onde foram retiradas mais pessoas que foram escravizadas são atualmente os mais pobres.

Agora, em vez de uma política internacional que busque resolver os impasses que comprometem a vacinação na África, nações simplesmente fecham as fronteiras. Não é preciso ser nenhum especialista da área para saber que só isso não vai dar certo. Mais letal que o vírus, há outro componente muitas vezes invisível, mas responsável por danos incalculáveis. Estou falando do racismo estrutural, que explica a ausência de uma tomada de decisão global e efetiva quanto à situação da África.

É esse mesmo racismo estrutural que também explica o discurso de dois médicos franceses que debateram a possibilidade de “escolher” a África como um campo de pesquisa para testar a vacina contra a tuberculose no tratamento da covid-19. Li sobre o caso no artigo “Racismo Pandêmico”, publicado em dezembro de 2020 na Revista Artífices e de autoria do professor Marielson Carvalho, doutor em Literatura e Cultura na Universidade Federal da Bahia.

O pesquisador, que discorre em seu trabalho sobre o discurso racista, político e científico sobre povos africanos, pontua: “Ainda sobre a fala dos médicos, ela reproduz um humanitarismo ocidental que se baseia numa ideia de incompetência e ineficiência dos africanos ao lidarem com seus problemas, muitos dos quais forjados pela colonização e mantidos mesmo após a descolonização. É um discurso de cooperação, a partir do qual se constroem estratégias para operar interesses comerciais,cuja lucratividade nunca será dividida igualmente com quem foi explorado”.

A ironia agora é que as consequências do colonialismo, do neocolonialismo e da necropolítica (esta compreendida no que se refere à covid-19 como um modo de atuação política que decide quem vive e quem morre, ou melhor, quem vacina e quem não vacina) serão divididas com o mundo todo. E mais uma vez a humanidade perde.

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