Você é uma jovem de 25 anos, classe alta, tem carro do ano e estuda medicina pagando sem dificuldades os R$10 mil da mensalidade? Parabéns! Você tem direito à meia-entrada no cinema. Inclusive naquela sala VIP onde o garçom te traz a pipoca na poltrona reclinada, para você não perder nada do filme.
Você é uma jovem de 30 anos, que cresceu na periferia e está desempregada pois teve que abandonar o ensino médio para cuidar da família? Sinto muito, terá que pagar o valor da inteira. Mas a verdade é que você nem cogitou ir ao cinema, pois mesmo a meia-entrada é cara demais para o seu orçamento.
E a juíza aposentada de 61 anos, que está há 10 anos vivendo de sua previdência especial de R$40 mil por mês, tem meia-entrada? Tem sim, é claro! E o técnico de enfermagem que está diariamente na luta contra a Covid-19, recebendo pouco mais de um salário mínimo? Ah, ele não.
Os exemplos são intermináveis, o diagnóstico é um só: a meia-entrada no Brasil é uma fábula. Com o argumento de tornar a cultura mais acessível, ela, na verdade, inflaciona o preço dos ingressos para todos e dá o benefício para quem não precisa.
O assunto voltou à discussão recentemente, devido a uma consulta pública da Ancine sobre o tema, que vai até o próximo dia 13. Segundo a própria Ancine, apesar de cerca de metade (!) da população brasileira ter direito à meia-entrada, apenas 17% das classes C e D foi ao cinema ao menos uma vez em 2017. Sinal claro do problema de focalização da política. Em 2019, quase 80% dos ingressos de cinema vendidos foram meia-entradas.
Tais números mostram que os ofertantes do serviço já precificam a extensão do benefício no valor do ingresso, fazendo com que a meia-entrada custe “a metade do dobro”. Tal política faz com que o país tenha o segundo ingresso mais caro do mundo, perdendo apenas para a Rússia, afastando justamente a população mais carente do acesso à cultura.
Melhor seria se o benefício simplesmente não existisse, com o preço regulado pela lei de oferta e demanda, e não pelas leis criativas de nosso Legislativo, que distorcem o mercado. Sem a obrigatoriedade da meia-entrada, empreendedores da cultura poderiam criar alternativas acessíveis para a população de baixa renda, como acontece em inúmeros outros setores, sem o risco de ter o negócio inviabilizado por conta de uma canetada repentina de políticos.
Caso os números não te convençam e você goste de viver na ilusão de que a meia-entrada é benéfica, tenho uma alternativa: poderíamos simplesmente estender a meia-entrada para todos os brasileiros!