É fome, também

04/11/2021 às 15:18.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:11

Em Brasília, no Distrito Federal, sede dos três poderes, um homem clama, grita por auxílio no meio da rua. Pedia ajuda para se alimentar, precisava de leite e pão para ele, sua esposa e os seis filhos.

A rua estava deserta e o seu grito ecoou pelas casas adentro. Seu nome é Marcos, dizia ele. Nas reportagens sobre o fato, muita gente falando que há diversos outros “Marcos” no Brasil afora.

Nós sabemos que não é só dar a comida que vai resolver o problema desse pai e da sua família. De manhã eles comem e à noite sentem fome. Mas, eles precisam se alimentar, embora haja um monte de gente que critique ONGs que apoiam materialmente várias famílias, dizendo que o assistencialismo não tira ninguém da miséria.

Essa é uma das falas que eu mais concordo, mas o assistencialismo devolve momentaneamente um pouco da dignidade, mantém o indivíduo vivo para que consiga ter aquilo que muitos críticos dizem ser o mais importante: emprego, educação, saúde.

Pergunte a qualquer pessoa que lida com o social qual deles não gostaria de fazer um trabalho em que não fosse preciso levar cestas básicas, marmitas, remédios e lanches, mas cursos de capacitação, acesso à educação formal, preparação para a empregabilidade ou empreendedorismo.

O que a gente precisa é de justiça social e enquanto estivermos muito distantes de promover esse acesso a bens intelectuais ou imateriais, pode-se assim dizer, o assistencialismo ainda será muito necessário. Dá-se assistência porque ela é necessária, pois não há emprego para uma considerável parcela da população, as escolas perderam alunos durante a pandemia, pela dificuldade que muitos tiveram em acompanhar, e não falo só a falta de internet ou e tecnologia nas casas, não. Falo de preparo mesmo, de habilidades que precisam ser desenvolvidas nos alunos.

Educação não é só abrir vaga em escolas públicas, mas é investir em melhoria contínua e efetiva dos educadores, é ter políticas que estimulem e promovam a valorização desses profissionais, inclusive a sua própria formação.

Dignidade é dar acesso a medicamentos a quem não tem recursos. É dar acesso à assistência médica para quem precisa.

Segurança não é só armar, mas é preparar pessoas para que zelem por todos nós. E isso passa por equipamentos, estrutura, treinamentos e apoio, de saúde emocional e mental, para que esses pais e mães, para que essas pessoas não percam a humanidade e, assim, a esperança e consciência – que é o que nos difere dos animais.

Um dia, uma primeira-dama de uma capital brasileira - e por não saber o contexto, não a citarei nominalmente – disse que as pessoas vivem nas ruas porque são preguiçosas e que gostam de morar nas ruas. Aí passa um indivíduo que um dia vê três marmitex ao lado de um morador de rua, pensa e fala: “esse povo não precisa de comida, não. Ganham coisas demais. Vi gente dando comida para a mesma pessoa diversas vezes numa noite. Eles até jogam fora.”

Se isso acontece? Sim. Se nós podemos generalizar que todos que estão na rua não valorizam a ajuda voluntária já é demais.

Seria mesma coisa de falar que fui mal atendido em uma loja e, por isso, todo o comércio ser julgado como ruim. Seria uma injustiça com todos os demais.

Um dia recebi uma mensagem de um rapaz que trabalhava de motoboy. Ele me disse que teve sua moto roubada e levaram o celular e a pizza que ele deveria entregar. Desde então ele não conseguiu comprar outro veículo, vai tentar adquirir uma bicicleta, mas naquele momento ele estava na frente de um supermercado de São Paulo pedindo doações: “estou vivendo de doações, por enquanto”. Há menos de um ano ele teve um filhinho e para não deixar a criança com fome ele foi para a rua pedir. Hoje não tem dinheiro nem para locar uma bicicleta.

Esse mesmo jovem foi colocado, quando criança, num caminhão de um conhecido no interior da Bahia, pela mãe, que tinha outros tantos filhos. O destino era a capital mais rica do Brasil, onde ele teria chances. Foi recebido em São Paulo por um parente distante, que continuou distante na relação com o menino.

Ele cresceu, conheceu as drogas, roubou, foi preso ainda adolescente. Saiu do crime, buscava serviços diversos para se afastar de problemas com os serviços ilegais. Depois do nascimento do filho e de ter sua moto roubada, ele persiste, pois não quer que o filho cresça sem pai.

São todas questões complexas, que não devem ser diminuídas em comentários que ignoram a realidade – apesar da liberdade de expressão que todos temos. Falar que todos são preguiçosos porque conhece alguém que faz mal uso de um auxílio é jogar todo mundo numa mesma fornada e esperar que saiam iguais.

Não é só sobre a fome. Diria que a fome é um sintoma de um adoecimento anterior. E não falo que estamos “doentes” só agora, nesse século, mas que há algo que não está bom e tem que ser enfrentado, não encoberto.

Fico bem animado com uma fala de Cervantes, em Dom Quixote, que diz: querer mudar o mundo não é loucura, não é utopia, meu caro Sancho. É justiça.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por