A força das Marthas e Aias

25/02/2021 às 18:54.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:16

Por uma semana resolvi deixar fluírem os sentimentos que surgiam à medida que eu ia assistindo às temporadas de “O conto da AIA”. Fui observando as emoções que eu ia sentindo e entendendo a razão pela qual nasciam e, mais ainda, dando nome a cada uma delas, fosse raiva, medo, ansiedade, nojo, alívio, esperança, indignação, tristeza, etc. Há algumas que ainda não conceituei.

Não vou negar que vivi uma semana com uma angústia imensa no peito, que atingiu a fundo a minha paciência e meu humor. Além das paradas para o trabalho e outras atividades, fiz algumas pausas para processar o turbilhão que aquela série provocou em mim.

Preferi ver primeiro a série para depois ler o livro, escrito pela canadense Margaret Eleanor Atwood, que até já dei uma folheada, inclusive. Esse romance distópico relata a tomada dos EUA por um grupo autoritário, que instala um regime totalitarista e teocrático, cujas leis têm como base o Antigo Testamento.

Mulheres não leem e são subjugadas aos seus maridos e “donos”; as “Aias” são mais que servas, são escravas reprodutoras, já que o mundo tem alto índice de infertilidade e as famílias poderosas precisam gerar uma prole. Só que nada é tão “simples” como estou relatando por aqui: há fanatismo religioso, cerimônias e rituais ardilosamente criados pelos homens do poder, centros de treinamentos de mulheres para que possam ser as escravas sexuais, mortes em forca e rituais de apedrejamentos incitados pelas “mentoras”, colônias degradantes, comitês de acusação e um monte de outras coisas mais.

A cada cena, a cada detalhe, a cada mudança de fisionomia dos atores, brotava em mim uma vontade: de responder às provocações e humilhações de “comandantes” e “esposas”, de soltar um grito, de jogar tudo para cima e resolver aquela situação que leva qualquer um ao limite, de se entregar e acabar de vez com a dor, de lutar até o fim, de não abaixar a cabeça. 

A vontade de fazer as “tias” provarem do seu próprio veneno, a dor das crianças, a proibição do amor, num lugar onde ninguém é feliz, o desespero às mães, a humilhação. 

A violência moral em cada ato físico parece que vai dilapidando o indivíduo a tal ponto que do antigo ser humano pouco sobrevive. As “Aias” e as “Marthas” não são as mesmas mulheres que entraram forçadamente naquele mundo autoritário. Elas são uma construção daquele mundo, que não deixará nenhuma delas ser a mesma. Mas, há um “cordão umbilical” que as liga ao seu “eu anterior” e que as mantém vivas. 

Viktor Frankl, no livro “Em busca de sentido”, explica que essa identidade é que vai nos lembrar quem e o que éramos lá fora, referindo-se à experiência nos campos de concentração nazistas, por onde ele passou. 

Primo Levi, no livro “É isto um homem!”, um dos mais sofridos que li sobre as vivências do holocausto, descreve um momento em que outro preso conversa com ele, dizendo que: “devemos nos lavar, sim; ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos (em direção ao trabalho forçado), sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer”.

Lembrei do Frankl também quando uma “Aia”, que sofre todo tipo de abuso e violência, além de passar por um processo de desconstrução de nome, história e personalidade, chega à capital do regime totalitarista e vê outras mulheres, na mesma função que ela, sendo ainda mais violentadas, inclusive ainda mais silenciadas. Aquilo poderia provocar um certo alívio, ao entender que há alguém em situação pior e que ela, mesmo no “inferno”, ainda estava melhor que muita gente.

Constatar que o outro foi mais injustiçado do que eu mesmo, não faz as injustiças a que fui submetido serem anuladas. Porém, Frankl relata que diante de uma situação em que vários judeus foram transferidos de Auschiwtz para um novo campo, que não possuía câmaras de gás, houve um alívio, e até um súbito momento de alegria, na renovação de sua esperança por mais um dia de vida.

Quando algumas pessoas me disseram que não tinham dado conta de assistir aos episódios da série, achei exagero. Hoje eu as entendo.

  

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