A mulher que ali existe

19/11/2020 às 20:08.
Atualizado em 27/10/2021 às 05:05

Tio Flávio*

Uma ex-aluna, Sílvia Leal, que trabalhava no shopping de Montes Claros, comentou sobre a humanidade do seu chefe à época, quando fui fazer um trabalho naquela cidade. Tratava-se do Fábio Freitas, que tendo mudado, mais tarde, para Belo Horizonte e assumido a superintendência do Minas Shopping, sempre se preocupou em abrir espaços para que as ações de entidades voluntárias mereçam destaque, visibilidade e apoio. 

O Fábio e a sua família são voluntários nos projetos do Tio Flávio Cultural e foi da equipe dele a ideia de iniciarmos uma “Árvore Solidária”, onde apresentaríamos, a cada Natal, instituições que desenvolvem importantes trabalhos sociais e voluntários em Belo Horizonte e Região Metropolitana. 

Estamos no terceiro ano desta ação, adaptada para os momentos atuais, mas sem perder o seu objetivo: fazer com que mais pessoas saibam que temos movimentos, ONGs, grupos, coletivos empenhados em ações que promovam assistência imediata a quem necessita mas, além disso, que desenvolvem projetos de dignidade humana e resgate de cidadania mesmo.

Tantas outras ações são realizadas no shopping e contam com a participação de comerciantes e clientes, como campanhas de doação de sangue, contação de história para crianças, arrecadação de roupas e alimentos em momentos específicos, como durante as enchentes e alagamentos e em decorrência da catástrofe de Brumadinho, dentre outras. Também já levamos diversos projetos sociais em várias sessões de cinema comentado, sobre temas da psiquiatria, que nos dão amplitude para entender os assistidos dos trabalhos que fazemos.

Mas de tudo que vivenciamos junto à equipe do shopping, uma história está bem viva em minha mente e é ela que passo a relatar. 

Fui convidado a participar, como audiência, de um evento sobre violência doméstica, um assunto que sou leigo e me interessa demais, justamente por encontrar, com frequência, situações em que mulheres são vítimas de intimidação ou agressões físicas por parte de seus maridos e, inclusive, dos seus filhos. Sempre recorro a amigos, pedindo orientações, e a projetos sociais que têm essa expertise, como o Nave – Núcleo Assistencial Veleiro da Esperança.

O evento contaria com as palestras da juíza da Vara de Violência Doméstica de Belo Horizonte, Dra. Maria Consentino, e da delegada Dra Ana Paula Balbino, da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher. Ganhamos uma cartilha, que fui usando para anotar todas as informações adicionais apresentadas pelas palestrantes. E que tem me ajudado até hoje.

Ao final, foi aberta a possibilidade de perguntas e algumas participantes tiveram a coragem de contar relatos próprios de abuso na infância e outras situações vividas. O auditório não estava lotado e aquelas pessoas, sentadas ao meu lado, pertinho de mim, ouvindo atentamente as especialistas, já carregavam dentro de si tanta dor, que viram ali um momento importante de desabafo.

De repente uma mulher levanta a mão. O ambiente, já que era num cinema, tinha uma certa penumbra, mas a voz daquela mulher ecoou, em meio ao seu choro. Ela direcionou a fala à Dra. Ana Paula e explicou que ela era uma daquelas mulheres, que por muito tempo foi violentada pelo marido, mas nunca teve coragem de denunciá-lo.

Naquele momento comecei a me questionar: seria por medo, por tentar “proteger” os demais membros da família, por convenção social ou por algo que chamamos de “desamparo aprendido”, em que alguém incute na mente do outro que ele é incapaz, que não é nada e não tem ninguém, a não ser aquele opressor, que ainda faz muito por estar com ela?

O relato sofrido, e ao mesmo tempo aliviado, continua. A mulher fala que um dia ela resolveu denunciar, foi à delegacia e era a Dra. Ana Paula quem estava de plantão. A vítima estava machucada de todas as formas, mas ainda receosa. Teve um momento em que ela contou tudo que aconteceu, mas desistiu de prosseguir com a denúncia. 

Foi quando a delegada deu a ela a liberdade de escolha, mas abriu a sua bolsa e tirou de lá um espelhinho, que colocou em frente ao rosto da mulher e pediu para que ela olhasse. Naquela hora a vítima percebeu que quem estava ali, naquele reflexo, não era a filha, mãe, esposa, profissional, mulher que ela tinha sido um dia. Pelo que entendi, o espelho refletia a imagem da vítima, mas fez despertar a mulher que tinha sido apagada, suplantada pelas agressões.

Nesse momento estávamos aos choros, todos. Foi aí que a mulher seguiu: eu vim aqui hoje dizer à senhora o meu ‘muito obrigado’. A violência silencia, mas não pode apagar a mulher que ainda há ali.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

  

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