Feridas abertas

30/09/2021 às 15:45.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:58

Eu precisei parar a minha rotina, meu velho ritmo um tempinho, depois de um ano e meio vivendo esse turbilhão de emoções que a pandemia trouxe. Deixei um banner no aplicativo de conversas do telefone avisando a todos que entrassem em contato que eu desativaria o WhatsApp, salvei todas as mensagens e conduzi o aplicativo para a lixeira.

Algumas pessoas me chamaram em outras redes sociais tentando entender se eu estava bem, se havia entrado em uma depressão ou coisa assim. Não, nada disso, eu precisava mesmo é descansar e repensar alguns pontos da minha vida, para isso, era necessário dar uma respirada para depois tomar um fôlego. 

Entendo que compaixão é viver a dor com o outro, e não viver por ele, mas, na prática, depois de vivenciar tantas questões sociais e humanas, a gente pode começar a duvidar se tudo que faz tem um sentido. E aí vem a parte gostosa da vida: dúvidas, e não só respostas.
Rubem Alves sugere que o verbo desenvolver significa afastar-se daquele ponto para que, de longe, possa vê-lo com mais abrangência, sem estar dentro. Assim a gente consegue evoluir, se “des envolvendo”.

Uma reflexão legal que vi no filme “Um Ninho para Dois”, que reforça muito o que já vemos por aí, é que cobramos demais dos outros para que se adequem ao nosso jeito, o que seria mais prático para a gente e, quando as coisas não acontecem ou dão errado, é mais fácil culpar o outro.

O filme fala muito sobre enfrentar os nossos fantasmas e até mesmo conviver com eles, conhecê-los, nos equipar como pudermos para afastá-los, mas sabendo que eles continuarão a existir. Essa é a minha livre leitura sobre um pássaro que atordoava todos os dias a protagonista do filme sempre que ela tentava colocar ordem em seu quintal. Sim, alguns fantasmas têm que ser exorcizados mesmo, outros nós vamos ter que caminhar com eles. 

Agora, escrevendo isso, lembrei de uma animação bem interessante chamada “Eu Tinha um Cachorro Preto”, que aconselho todo mundo a assistir. No filme “Um Ninho para Dois” tem uma cena em que o marido da protagonista explica que seu problema não surgiu com a morte da filhinha, mas que ele tem uma depressão há anos.

Parece que nesses últimos meses a pandemia veio e abriu a portinha das gaiolas, deixando nossos pássaros saírem. E a gente não estava preparado para a liberdade deles, sufocando a “suposta” liberdade que tínhamos. E isso se deu de uma forma acelerada. 

Lembro de um professor de arte ensinando de maneira bem direta o Dadaísmo e ele disse: “É como se os artistas dadaístas jogassem um monte de folhas de formatos diferentes para cima e como elas caíssem, aí se construía a arte”. Kurt Schwitters, artista plástico alemão, compunha telas fazendo colagens aleatórias de recortes e papéis que encontrava no cotidiano, como aqueles bilhetes de trem, embalagens de pão e fotografias.

Imaginei-me num momento dadaísta, que me perdoem os artistas, pois sou leigo no assunto e só estou usando a referência pela imagem que trago na memória de um professor falando de tal movimento. Mas, resolvi tirar tudo da gaveta e jogar para cima, aí eles foram caindo, cada qual num lugar, inclusive sobrepostos. Olhei para tudo e comecei a movimentar, descartando o que não compunha a arte e refazendo aquilo que achei que tinha mais sentido. 

Mas, antes do movimento, é preciso ter ao menos serenidade para entender o que se quer mesmo. A professora da escola de filosofia Nova Acrópole, Lúcia Helena Galvão, disse que propósito e projetos são diferentes. O propósito morre com você, mas vai te guiando pela vida. O projeto “morre” ao ser realizado, ou seja, ele cumpre seu papel quando sai do papel.

Aí eu chego no ponto em que eu queria: tantas reflexões que tive nesses dias foram de entender que muitos de nós estamos vivendo essa intensidade de momentos. Problemas já existiam, mas parece que a gaiolinha dos pássaros, dessa metáfora que usei do filme “Um Ninho para Dois”, se abriu simultaneamente em diversas áreas das nossas vidas.

Aprendi, num curso que fiz recentemente, que a gente não deve usar o termo “pelo menos” com ninguém: “ah, você teve uma queda em suas finanças, mas pelo menos não tem uma família grande como a minha para criar”. Esse “pelo menos” reduz a dor do outro e ninguém carrega uma fita métrica ou uma balança para medir ou apurar dores alheias.

A minha maior dúvida diante desse cenário todo era entender onde eu me encaixo nisso tudo e o que eu quero, de verdade, levar na minha mochila nessa caminhada. Como disse o pedagogo e filósofo austríaco, naturalizado israelense, Martin Buber: “É junto ao tu que o ser humano se torna eu”. Os traumas do outro inclusive me fazem entender ainda mais quem eu sou. As alegrias, as experiências, as vivências também, inclusive.

O médico e escritor mineiro Guimarães Rosa já dizia: “É junto dos bão que a gente fica mió”. Os “bão” são aqueles com quem a gente aprende e isso nos faz ficar melhores, para nós mesmos e na nossa entrega para o mundo.

Enfim, na vida, alguns ciclos se fecham pela própria natureza, outros a gente tem que dar uma forcinha. Que vivamos os lutos, que possamos chorar, afinal, um casal que se separa não é só uma mudança de CEP; uma pessoa que é subjugada e violentada, não é só falar que não quer mais; alguém que está sem emprego, não é só cortar os custos; quem perdeu alguém, não é só seguir a vida como se tudo fosse, com o tempo, voltar ao normal.

Nada é tão simples como nos fala quem está fora do problema. A vida não vai ser a mesma após uma pessoa sofrer uma violência de alguém que amou e confiou. A vida não será a mesma depois de enterrar um ente querido. Vai ser diferente, nada volta ao normal, as marcas ficam. O que a gente tem que aprender é como tratar essas feridas para que cicatrizem, e isso não é só com o tempo, como eu um dia já acreditei. 

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