O olhar sem máscara

04/06/2020 às 19:32.
Atualizado em 27/10/2021 às 03:41

Num dia desses eu fui dar uma entrevista a uma rádio mineira sobre um projeto chamado “Poemia”, que criamos pelo Tio Flávio Cultural nessas épocas de pandemia, com o objetivo de sensibilizar as pessoas para uma cultura de valorização e respeito ao envelhecimento e, também, de acalentar, por assim dizer, os idosos em ILPIs (Instituições de Longa Permanência para Idosos), uma vez que as visitas de familiares e voluntários estão suspensas.

Chamo um motorista de aplicativo e viajo sentado na poltrona de trás, coisa nova para mim, mas necessária no momento. Tanto eu quanto o motorista estávamos de máscara e conversávamos sobre o impacto econômico na vida dele e a solidariedade de grupos que têm sido fundamentais a tantas pessoas em situação vulnerável.

Falei das atividades sociais que nosso grupo voluntário fazia e ele falou comigo: “mesmo de máscara eu sabia que você era uma pessoa boa, deu para ver nos seus olhos”. A gentileza desse motorista, nascido na cidade Pará de Minas, me ressaltou a atenção de que os olhos são uma porta aberta e que tal constatação daquele senhor se dava pela formação em filosofia, que dá um olhar diferenciado às coisas e pessoas. Mas ainda assim achei muita bondade da parte dele tal comentário.

Após a entrevista na rádio eu tinha que ir ao apartamento para depois ir a uma casa de acolhimento de jovens de 12 a 18 anos, de onde um dos adolescentes completará sua maioridade e terá que deixar o abrigamento. No percurso de volta, com um outro motorista, ao parar num sinal de trânsito dois meninos, que sempre vendem chocolate nos sinais, estavam na av. Bias Fortes, centro de Belo Horizonte, e vieram em direção à janela. Dessa vez eles não tinham o chocolate e estavam com aquelas garrafinhas de água e sabão, para lavar para-brisas, o terror dos motoristas.

Levei um susto ao perceber que o motorista tinha autorizado o menino a lavar o vidro dianteiro, naqueles minutinhos da parada no sinal. Ele paga com uma moeda, que o menino, com uma máscara descartável já surrada, agradece. Ao olhar para mim ele diz: “Oh amigo, você sumiu”. Ele e o irmão são meninos esforçados, trabalhadores, que não têm conseguido vender mais bombons nos sinais, mas precisam ir às ruas buscar a sobrevivência de uma família de cinco irmãos. 

Dias atrás, na minha ida ao supermercado, eles não me reconheceram de máscara. Mas, naquele dia, dentro do carro, creio que a identidade revelada pelo olhar, ainda pouco explorado por muitos de nós, já têm conseguido se sobressair.

Em um único dia da semana em que saí de casa, senti que os olhos se comunicando tornou-se uma experiência ainda mais forte, pois a gente talvez use pouco esse recurso. Mas ao mesmo tempo me lembrei dos irmãos gêmeos Ricardo e Romário Fot, que ficaram cegos ainda crianças e que conseguem reconhecer as pessoas usando outros sentidos.

Nós carregamos uma “enciclopédia” não lida em nós mesmos. Alguns, como eu, estão começando a descobrir a maravilha de folheá-la. Tomara que prazer maior seja descobrir lê-la e, aos poucos, entendê-la. 

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