Olhos que não calam

21/08/2020 às 08:10.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:20

As visitas aos setores de hemodiálise dos hospitais sempre me deixaram muito sensibilizado, já que a primeira vez que lá estive imaginei que encontraria tantas pessoas sentadas em suas cadeiras, tristes, melancólicas, lamentando da vida, questionando alguma divindade ou “força maior”.

Iniciamos esse nosso projeto de visitas no Hospital da Baleia, depois ampliamos para o Felício Rocho e esse ano teríamos a primeira ação numa clínica nefrológica, se não fosse a ocorrência da pandemia. 

Mas, há alguns anos, quando demos início às atividades, fui com o grupo e, como sempre busco fazer, fiquei mais observando, mas é claro que as pessoas sempre perguntam: “de onde vocês são?” ou “de que igreja vocês são?”. E, aí, não tem jeito, a conversa flui, raramente sobre o tratamento ou a situação que os levou até ali, mas sobre os projetos sociais que fazemos, assim como outros assuntos.

Nessa mesma primeira visita, quando fui passando pelo corredor, um senhor me chamou a atenção pelo sorriso leve. Ao chegar perto percebi o seu olhar tão tranquilo e tão simples. Fui conversar com ele, que me explicou o tanto que dedicava de tempo e esforço para estar no hospital três vezes na semana. Ele não falou do tratamento, não negativou o que estava vivendo, não reclamou do esforço, só foi contando, de maneira tão natural, os ônibus que precisa recorrer pela madrugada para não deixar de fazer a hemodiálise.

Sei que nem sempre eles estão com sorrisos nos rostos, assim como nós. Há dias em que pesa o cansaço, a mudança brusca no ritmo da vida, as horas ali dedicadas. Sei que têm dias em que estão tristes, sim. Há outros em que não se sentem bem, também.

Eu segurei na mão daquele senhor, para me despedir, e percebi que ele apertou um pouco mais forte, como se inconscientemente pedisse para ficar. Sei que tudo isso é fruto da minha percepção e comoção pelo contexto da primeira vez em que eu estava ali. Antes de sair de perto dele, já que precisava passar pelas outras poltronas e ver os demais pacientes, queria deixar uma “palavra” de ânimo. Olhei para ele e soltei: Fica com Deus. E tenha fé, tá? A vida é dura em certos momentos, mas tenha fé.

Ele, sorridente o tempo todo, falou: “oh, meu filho”. Só essa parte já derruba a gente, pela força da expressão, mas ele continuou: “a vida não é tão dura do jeito que você está falando aí não. Imagina, se ela fosse tão dura assim, você acha que eu estaria aqui, lutando para viver mais um dia?”.

Isso não foi lição de moral, nem frase pronta. Foi a mais pura forma sincera dele me agradecer de estar ali, com ele, vivendo aquele dia dele. E meu.

Dentro das hemodiálises temos muitas histórias. Uma senhora cega, que adora que os voluntários façam as suas unhas e a maquiagem, enquanto cantamos o bingo na ala; um senhor mais reservado, sempre com máscaras (esses casos são antes da pandemia e a máscara é muito comum nesses ambientes), que pediu ao enfermeiro para me chamar, abaixou a máscara, perguntou e pediu: “o senhor que é o Tio Flávio? Vou te pedir uma coisa, não deixa esse pessoal parar de vir aqui não, a gente gosta e precisa muito deles”. Esse senhor também me marcou: cabelinho branco, todo arrumado, com calça social, camisa para dentro da calça, cinto e sapatos. Ele fica quatro horas na máquina de hemodiálise e vai todo arrumado, como a um compromisso social.

A outra paciente, que pediu ao marido, na ida ao hospital, que parasse para comprar doces e balas na padaria, pois aquele era o dia do nosso grupo ir visitá-los. Ou o choro de um jovem, braços cheios de caroços e marcas do tratamento, que queria um violão no Natal e se emocionou ao receber o presente. Teve um que fez uma brincadeira, pedindo algo bem difícil, pois ele achou que também estávamos brincando. E ele ganhou o que pediu, como todos. 

Admiro cada um dos voluntários que tira forças para persistir nas visitas hospitalares. Bem sei, por relatos, como a maioria dos pacientes gosta, se alegra, modifica sua postura, acorda para brincar e conversar. Alguns insistem que pode gravá-los e pode postar suas fotos. Mas quanto é admirável o olhar que cada um daqueles homens e mulheres vai construindo da vida e sua importância, da esperança, da fé e da gratidão, vivida em pequenos minutos de uma visita voluntária, mas que é alimentada por eles e por nós, pelo “simples” fato de não se sentirem sozinhos. 

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