Pálida esperança

28/01/2021 às 19:21.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:02

Naqueles dias em que a gente procura por um bom filme, dentre as opções de um catálogo, me deparo com um lançamento, “O tigre branco”, que aborda a trajetória de um indiano, vivendo em uma cultura e tradição religiosa fortes, que sonha em ter um destino diferente do restante da família, em que as pessoas se casam cedo, ainda crianças, e sem ao menos pode escolher com que terá essa comunhão.

O filme retrata uma cultura em que a educação formal pouco importa, há uma submissão eterna aos patrões e nunca se pode imaginar em um lugar diferente daquele, já que eles vêm de um sistema rígido de estratificação social em castas. 

Uma matéria da BBC afirma que o país já chegou a ter 3 mil castas e 25 mil sub-castas e que, apesar de mudanças no decorrer dos últimos anos, as identidades de casta permanecem fortes e os sobrenomes são quase sempre indicações da casta a que uma pessoa pertence.

É nesse contexto que se passa o filme e que, no finalzinho, traz uma frase do poeta muçulmano Iqbal, citado pelo protagonista, que diz: “quando você reconhece o que é belo no mundo, você deixa de ser escravo”.

Desconhecendo o tal poeta, fui pesquisar quem era e quais eram seus pensamentos. Muhammad Iqbal nasceu na Índia em 1877 e morreu em 1938. Filho de um alfaiate muçulmano e de uma mãe bastante generosa, era também conhecido como Allama Iqbal. Foi poeta e filósofo muito influente entre indianos, paquistaneses e iranianos, além dos amantes da literatura internacional.

Seus pensamentos são muito admirados até por correntes contraditórias, como talibãs, feministas e ativistas democráticos no Afeganistão. Um dos seus poemas, “Canção da Índia”, é um hino extraoficial desse país.

Falava 6 línguas, estudou filosofia na Inglaterra e conquistou o doutorado em Munique. Voltou para o Paquistão para lecionar filosofia e literatura inglesa. É dele um aforismo muito citado: “As nações nascem nos corações dos poetas e morrem nas mãos dos políticos”.

Porém, nessa pesquisa biográfica, deparo-me com outro Iqbal, dessa vez um menino do interior do Paquistão, inclusive por onde o poeta muçulmano de mesmo nome tinha deixado muitas raízes. 

Iqbal Masih, um menino cristão, nascido num vilarejo próximo de Lahore, que aos 4 anos de idade foi “penhorado” pela família muito pobre, que não via outra saída a não ser entregar o filho aos agiotas em troca de poucos dólares (rúpias, na moeda deles), Uma miséria de dinheiro, mas que ajudaria a comprar medicamentos para um dos filhos e comida para todos. 

Iqbal foi feito escravo no trabalho infantil em olarias de tijolos e tecelagens de tapetes, que eram vendidos aos ocidentais por muito dinheiro, mas que não chegavam às crianças, pois elas tinham que trabalhar para pagar a dívida da família, numa rotina cruel, insalubre, desumana e infindável.

Fiquei interessado pelo tema e comprei o livro “A história de Iqbal”, do italiano Francesco D’Adamo, que conta essa história, mas de maneira ficcional, sob o olhar de uma outra criança escrava, a Fátima, numa escrita tão doce, de um assunto tão ácido, que me faz parar para refletir e desembaçar os óculos diversas vezes. Em algumas partes podemos até rir com a ingenuidade das crianças e suas pequenas alegrias e fantasias.

Aos 10 anos de idade Iqbal consegue fugir do local onde trabalhava e denuncia o seu patrão. A partir daí ele começa a fazer parte de um movimento pela libertação de crianças do trabalho infantil, que em 2016, em dados levantados pela Organização Internacional do Trabalho OIT), aprisionava cerca de 152 milhões de crianças no mundo, entre 5 a 17 anos.

Em 1995, com 14 anos, Iqbal ganhou um prêmio mundial de Direitos Humanos nos EUA e logo depois voltou para a sua cidade, onde passaria um mês com a família antes de ir desfrutar de uma bolsa de estudos. No dia da Páscoa, aquela criança cristã é calada. Nesse mesmo dia em que muitos afirmam que ele, na verdade, se tornou ainda mais presente no olhar e na pálida esperança de muitas outras crianças escravizadas.

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