Perdemos ou ganhamos?

02/04/2021 às 10:46.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:35

Anos atrás, ao chegar ao Centro de Internação Provisória Dom Bosco, unidade socioeducativa para adolescentes em conflito com a lei, fui levado para uma pequena sala, onde as funcionárias sempre me serviam um café com alguma guloseima levada de casa por elas próprias.

Eu sempre brincava que adorava dar palestras ali, pois o “estado” sempre nos oferecia um lanche reforçado antes das atividades. Ríamos todos, pois cada uma era responsável em levar um pó de café, um bolo, um biscoito para que o lanche pudesse acontecer.

Apesar do ambiente de privações, aquela salinha onde ficam pedagogas e terapeutas ocupacionais acolhe a todos.

Encerrando uma atividade, chega na sala um jovem pastor, devia ter menos de 30 anos de idade, com as calças largas, assim como seu sorriso. Cheio de coisas nas mãos e de animação. Ele tinha acabado uma oficina de hip hop com os adolescentes e contava da evolução e da entrega de alguns. Falava de outros que ainda estavam mais desconfiados, ainda arredios.

A Tamy Simão, pedagoga da unidade, nos apresentou e disse: “vocês dois tinham que se conhecer, pois fazem trabalhos lindos e têm que fazer algo juntos”. Trocamos contatos e eu fui lá para dentro fazer a minha atividade.

A partir daí o Tiago Brito passou a ser figurinha presente nas ações do Tio Flávio Cultural, visitando APACs, presídios, escolas de ensino médio, dentre outros projetos. Nos ajudou em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos no Parque Turistas, em Contagem, e também em algumas casas de acolhimento de crianças e adolescentes e numa casa parceira que acolhe crianças com câncer, em BH.

Tinha mania de mandar mensagens antes das seis da manhã, pois acordava cedo para enfrentar a maratona de transportes coletivos para chegar às atividades. Numa dessas mensagens da madrugada ele relatava que os jovens de outra unidade socioeducativa estavam escrevendo suas histórias em forma de música, e que ia me mandar os textos. Lembro demais desse dia, pois eu lia, chorava, refletia e me indignava com a ausência do Estado, da sociedade, da família na vida de tantas crianças.

Durante a pandemia criamos um grupo virtual só com instituições sociais que atuam no voluntariado. Como o Tiago estava à frente da Missão Ousado Amor, ele entrou no grupo. Tivemos a ideia de escrever um livro com histórias que os grupos viveram no voluntariado e que seria interessante deixar registrado, para que belas histórias não se perdessem no tempo.

Como fiquei responsável em organizar os textos, lia todos e me emocionava, ainda mais pela sensibilidade que todos estávamos nos primeiros dias de pandemia, sem saber de nada, sem entender muita coisa do que acontecia no mundo.

Um dia recebo um áudio do Tiago, que chamávamos de “podcasts”, já que tinham uma duração mais longa. Ele queria explicar o texto: “Tio, vou te mandar nossa história, ela aconteceu na cracolândia (BH) com nosso grupo de voluntários que faz as abordagens na madrugada. Era um sábado, véspera do dia das mães (...)”.

Ele queria dividir a emoção vivida. Contava a história de uma criança, com uma pipa do super-homem, vagando pela cracolândia (nome que atribuem a uma área de consumo de drogas próxima ao histórico conjunto IAPI, em BH). O menino procurava alguma coisa para dar à mãe de presente, pois daí a alguns minutos já seria domingo e ele não tinha nada para homenageá-la.

O grupo de voluntários cercou-o para entender como encaminha-lo à família e, sensibilizados, falaram que tinham saquinhos com balas e pipoca, se poderia ser esse o presente que ele procurava. Nesse mesmo momento chega a mãe do garoto, desesperada procurando por ele. Faltavam minutos para o dia das mães e o menino entregou, ali mesmo, o seu presente.

Não satisfeito, o Tiago mandou a foto daquele momento, que era a imagem perfeita da história que ele contou.

No penúltimo domingo de março o Pastor Tiago, Tiago Brito ou simplesmente Tiago nos deixou, depois de uma luta de um mês contra a Covid. Deixa a esposa, um filhinho, vários amigos, diversos projetos e uma lacuna no meio social.

Eu ainda terei a oportunidade de falar para o filhinho do Tiago, um dia, quem foi o seu pai, que grande ser humano foi aquele que viveu entre nós, numa missão, creio eu, pois para ele não havia tempo ruim, muito pelo contrário. Perdemos, sim. Mas só se perde o que se tem e o Tiago foi um presente.

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