Peregrinar

04/03/2021 às 20:18.
Atualizado em 05/12/2021 às 04:19

Entramos numa unidade prisional feminina numa segunda-feira bem cedinho e o nosso objetivo era o de bater um papo com as recuperandas, mulheres que foram sentenciadas pela Justiça e hoje cumprem sua privação de liberdade numa APAC, associação que possui uma metodologia de ressocialização própria e com reconhecimento mundial.

As regras internas da instituição são bem claras e a disciplina é bastante rígida, mas não há o emprego de agentes penitenciários e nem uso de armas na condução de todas as ações das unidades que atuam com essa metodologia e que foi criada há quase 50 anos, em São José dos Campos, pelo advogado Mário Ottoboni, ganhando espaço principalmente em Minas Gerais.

Gosto muito de uma definição da filósofa da Nova Acrópole Internacional, Delia Steinberg Guzmán, que diz que a “disciplina é fazer o necessário para manter sua consciência elevada”. Percebemos que esse é um ponto importante para o trabalho das APACs, que hoje atua além do território mineiro, estando presentes em outros estados e vários países que já utilizam seu trabalho como referência.

Fomos recebidos pelas próprias recuperandas, que nos conduziram para a identificação, guarda de pertences e para a atividade, que em função da pandemia tem toda uma rotina diferenciada.

O palestrante do dia foi o Bernardo Sant’Anna, mais conhecido como Bê, que há alguns anos já havia feito relatos de sua experiência de vida em outras unidades prisionais, porém masculinas. 

Durante toda a visita as mulheres se envolvem, se doam integralmente. Elas se emocionam e não se importam de demonstrar isso, ao contrário dos homens, que guiados pela cultura de que “homem não chora”, tenta cercear ou suprimir suas emoções ao máximo, numa sociedade que nos apresenta níveis altíssimos de suicídio masculino.

O Bê se apresentou como pai e peregrino, explicou que peregrinar é ter uma causa e contou o que o levou a caminhar, da primeira vez, mais de 2500 quilômetros de Roma a Santiago de Compostela. A cada história, uma reflexão. 

Algo marcante foi quando ele disse que não fez o trajeto tendo todos esses quilômetros na cabeça a cada manhã que acordava, mas que tinha em mente o que ele ia caminhar no dia: “eram os 42 quilômetros a cada dia que eu ia caminhar, por isso eu me levantava, jogava meu coração na cidade que eu tinha que chegar e iniciava o trajeto, ao encontro do meu coração”. E assim ia, no dia seguinte, e no outro e no outro, até que ele cruzou o pórtico da cidade na Espanha, carregando em si a esperança, a fé e a súplica de várias pessoas que conheceu pelo caminho.

As mulheres agradeceram com o que tinham: o olhar respeitoso; a atenção a cada fala e movimento; as lágrimas de compaixão pelas dores físicas e emocionais que o Bê sentiu. No fim da fala, dedicaram a ele uma música e, enquanto cantavam, eram observadas pelo palestrante, que disse que as carregaria, simbolicamente, na próxima peregrinação. Ou, melhor ainda, que eles caminhariam juntos.

As histórias de “caminhos diversos”, contadas por convidados, são compartilhadas pelo Bê Sant’Anna em seu podcast “Eu caminho”, que com leveza nos ajuda a entender significados, sentidos, a vida e a fé, a família e nossos valores, sem fórmulas, construído no passo que cada um se propõe a dar.

  

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