Quando a vida perde o sentido

10/12/2020 às 19:39.
Atualizado em 27/10/2021 às 05:16

Em janeiro iniciamos o ano fazendo planos, assim como muita gente, e justamente no dia da nossa reunião de gestores do Tio Flávio Cultural, com tantas boas ideias fluindo, saímos do auditório e presenciamos um “dilúvio” em Belo Horizonte, com chuvas que arrasaram a cidade.

Naquela ocasião acreditamos que seria essa uma das maiores tragédias do ano, mas mal esperávamos que tão breve viria um vírus que determinaria um isolamento social, a suspensão do funcionamento de escolas, templos, comércios e o afastamento físico daqueles que tanto amamos.

A expectativa era de que em uns rápidos meses tudo aquilo ficasse para trás, como ficará um dia. Mas o problema persistia e até agravava. Ainda estamos aqui, sem saber de nada.

O planejamento foi abandonado e uma paralisação das nossas atividades voluntárias foi necessária, já que atuamos com o relacionamento, o contato, o olhar, o abraço. Foi necessário reinventar um monte de coisa e inventar outras tantas. Projetos remotos, ações virtuais, reuniões online e por aí vai.

Alguns meses se passaram e chegamos aqui, no fim do ano. Queríamos muito comemorar o aniversário de 10 anos do Tio Flávio Cultural, o nosso movimento voluntário e solidário, com abraços e gargalhadas, choros e soluços, numa mistura de emoções que sempre vivenciamos quando reunimos os voluntários. Mas não foi possível, pelo menos no que diz respeito ao encontro presencial.

Numa noite de quarta-feira, desse dezembro de 2020, convidamos as famílias dos voluntários para que, virtualmente, se juntassem para assistirem a alguns relatos que justificam, como se fosse necessária, a importância do trabalho voluntário, do contato com o outro, do respeito às histórias das pessoas e da possibilidade de conhecer outras realidades de gente que desenhamos na nossa mente, com base num roteiro único que recebemos por aí.

Na telinha dos computadores e celulares, transmitidas pela página da Educan Brasil, surgiriam histórias que representariam tudo aquilo que a gente acredita: ter uma causa que vá além de nós.

Iniciamos com um vídeo do Léo Martins, do Instituto O Grito, em Ribeirão das Neves, MG, que impacta em diversos aspectos pela sua história pessoal e do projeto que ele coordena hoje. Não queremos dar o sorvete, mas dar a essas crianças a possibilidade delas próprias comprarem o seu sorvete, diz ele.

Na sequência entra o Jac-Ssone Alerte, haitiano que está lá na sua terra natal, chegando naquele instante de uma obra que está conduzindo para dar dignidade às pessoas da sua comunidade. Um homem que sem falar nosso idioma veio ao Brasil estudar Odontologia, mas que depois do terremoto que assolou seu país resolveu fazer – e fez – Engenharia Civil na UFRJ e prometeu à mãe que voltaria - e voltou - para fazer algo pelo seu povo.

Silvia Castro entra em seguida, contando sua trajetória de comunicadora que ouve e vivencia tantas histórias de projetos voluntários que se dedicam a fazer um mundo melhor. Ela viajou o mundo para conhecer práticas interessantes e pessoas incríveis. Com seus relatos, reconhece o trabalho anônimo de tanta gente e, ainda, nos provoca a não cruzar os braços.

A Maha Mamo entra fazendo o relato de sua experiência de nascer no Líbano e não poder ser considerada libanesa, pois é filha de pais sírios que, para agravar, viviam uma união inter-religiosa entre uma muçulmana e um cristão, o que não é permitido na Síria, tornando a Maha e seus irmãos pessoas sem pátria.

Nossa noite é encerrada com a história da Larissa Carvalho, uma mãe de muitas batalhas, apaixonada pelos filhos e que por amor, e desconhecimento, amamentou o filho e matou seus neurônios, pois pelo teste do pezinho uma doença rara do seu caçula não foi constatada. Hoje ela luta para que o teste seja ampliado, identificando outras tantas doenças.

Depois de tudo isso fui dormir e não consegui, tamanha a emoção de vivenciar tanta beleza e de imaginar que cada um que ali nos ouvia tem suas próprias histórias, ricas em muitos sentidos. Porém, havia um incômodo na madrugada que ia além da felicidade desse dia. 

Ao iniciar a nossa reunião virtual falei de um vídeo que assisti, em que uma criança com uma caixinha que usa para arrecadar dinheiro entra numa sapataria, abre a caixa para contar quanto tinha, para ver se era o suficiente para a compra de um calçado que ele queria.

Fiquei sensibilizado com aquela cena, não pelo calçado, que espero que a criança tenha conseguido, mas com a força da imagem, de alguém tão novo, com um sonho, para mim tão pequeno, para ele imenso, talvez. O que me incomodava nessa madrugada não é lembrar o olhar de inocência da criança e sua determinação em conquistar licitamente o que tanto quer. Não é “dó” nem “pena”, pelo contrário, é um desejo de que “pequenos” sonhos sejam buscados, como fazia a criança, e não “simplesmente” abandonados. Quando desistimos de querer é porque a vida perdeu seu sentido.
 

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