São só garotos. Acho que todos somos!

18/11/2021 às 20:26.
Atualizado em 05/12/2021 às 06:17

Todos os dias que eu passo por ali, naquela esquina, lá está ele. Uma caixinha na mão, passando de carro em carro no sinal da rua Curitiba com a avenida Álvares Cabral, em Belo Horizonte.

Simpático, educado, o jovem conversa com todos, oferecendo uma bala num momento ou paçoquinha noutro dia. Ele me disse que um cliente o orientou a vender paçoquinhas, pois sai mais rápido e o custo é mais baixo, dando mais lucro.

Paro para conversar e ele já me diz:

- Oh, Zé, você lembra de mim, não? Eu ficava ali em frente ao supermercado, junto com dois amigos, vendendo bala e você sempre deu moral pra gente!

Eu disse a ele que não lembrava, só me recordava de uns meninos menorzinhos. Inclusive o primo de um deles está num abrigo que a gente visita pelo Tio Flávio Cultural. Aí ele retrucou:

- Era a gente, eu era um deles ali.

Não, não pode ser, disse a ele. Era um menino pequenininho que ficava ali. Pois é, a criança cresceu, fez 19 anos e para ajudar a família e tem nos sinais o seu emprego. 

Sei que pode ser chato, mas automaticamente eu perguntei: e aí, está estudando? Ele respondeu que sim, olhou para um livro que eu levava, que fala sobre o cérebro e a felicidade. Ele me disse que gosta de livro assim, para ajudar a “entender os outros”.

Perguntei se ele gostava de ler e escrever e ele falou que sim, aí já tive uma ideia: “se eu te der um livro para ler, você faria um resumo dele para eu saber se é bom para eu ler ou não depois?”. Ele respondeu que sim.

Combinei de ele entregar o livro e o resumo na portaria do meu prédio e a cada livro lido ele ia ganhar uma caixa de paçoquinha para vender. Ele ficou entusiasmado:

- Noh, zé! Nem sei o que falar, vai me ajudar muito. Meu pai nem vai acreditar.

Essa semana ele me entregou o texto. Semana que vem entrego a ele um novo livro. Pedi a ele para explicar ao pai de onde vinham o livro e a doação e carimbei o livro com a marca e o site do Tio Flávio Cultural para o pai ter uma certa segurança da procedência do presente - ou da recompensa.

Continuei subindo a avenida Álvares Cabral para ir a uma copiadora que eu gosto e que paro sempre para bater um papo, quase na esquina com a rua da Bahia e Guajajaras. Acabando o que tinha para fazer ali, saí para tomar um café num empório que também vou com frequência, na rua Rio de Janeiro, quando vejo um jovem brigando com um cachorro, tentando espantá-lo. Ele procurava alguma coisa dentro dos sacos de lixo, colocados num calçadão ali da Álvares Cabral, Bahia e Guajajaras, onde ele mora.

Levei um susto danado com o cachorro vindo em minha direção: ainda estou apanhando até hoje com o uso de máscara e a pouca visão por causa dos óculos embaçados pela respiração. O menino chegou perto de mim e falou “desculpa aí” e foi caminhando para a lixeira em frente a uma lanchonete. Eu olhei para ele e respondi: e aí, Lucas, beleza?

O menino me olhou com os olhos esbugalhados - eu estou careca, o que é novidade para alguns, usando boné, máscara e sem a minha tradicional camiseta do Tio Flávio Cultural. Ele não me reconheceu, mas vi que se esforçou. Ele olhou para mim, sem ter coragem de demonstrar que não sabia quem eu era. 

Esse jovem eu conheci quase criança, num socioeducativo, quando tinha uns 14 anos, depois ele foi para um abrigo que eu visitava regularmente. Com uma história de vida atribulada, sem família como referência, ele era agressivo como defesa. Na hora que eu o cumprimentei, vi ainda um menino, com um olhar inquieto e que, ainda sem me reconhecer, me respondeu depois que eu disse o seu nome: “Deus te abençoe”.

Não sei o motivo, mas eu não disse quem eu era para aquele garoto naquele momento. Respondi um “fique com Deus” e segui, em direção ao meu café, pensativo demais, talvez ainda mais assustado que ele, num misto do poema “O bicho”, de Manuel Bandeira e da música “Construção”, também um poema, de Chico Buarque: “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir... Deus lhe pague”.

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