Sair da rua é possível

06/08/2021 às 15:38.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:37

Tio Flávio*

“Não tem problema eu participar do concurso de poesia, não? Sou semianalfabeto, mas gosto de escrever. Se não for tirar ponto por erro, coloca meu nome na lista.”

Esse foi o apelo de um jovem com trajetória de rua, que pediu para fazer parte de um concurso cultural de canto, poesia e desenho. No caso, ele optou apenas pela modalidade poesia.

Mas percebe-se que história ele tem para contar. Na conversa, me disse que já pulou no Ribeirão Arrudas. Não tive como aprofundar em como se deu isso; se ele pulou ou caiu, mas dá para perceber que muita coisa aquele jovem já viveu. Sempre falo algo que aprendi: maturidade não vem só com a idade.

Ele mora nas ruas e é bem interessado e agitado, querendo participar de tudo. Não tem família e nem perspectiva em longo prazo, mas está bem preocupado em viver o momento dele, a juventude dele, com todas as perturbações e problemas que pululam em sua mente e “coração” e numa animação que dá gosto ver.

Lembrou-me um outro rapaz de uma república que abriga homens que saíram recentemente das ruas para serem ali acolhidos. Ao perguntar se ele tinha sonhos, a resposta foi rápida: “sim, depois do vício no álcool perdi muita coisa. Minha esposa faleceu, eu era engenheiro, formado pela Unicamp, e trabalhava numa multinacional. Com a morte dela, não dei conta de suportar. Fui ao chão. Agora, sonho em me reaproximar da minha família, mostrar a mim mesmo que consigo me livrar do álcool e seguir”.

Mas, não acabou por aí, não. Eu o perguntei qual era, então, o maior sonho que ele tinha e a resposta foi: “agora eu quero ver minha neta se formar na faculdade”. Eu, professor universitário, sorri para ele todo alegre e fui logo pesquisando onde a neta estudava e que curso fazia, no que ouvi a resposta: “ela tem só quatro anos”. No susto, falei com ele que ia demorar um pouquinho para realizar esse sonho, ao que ele respondeu: “não tem problema, não. Não tenho pressa, não”.

Muitos dos que estão nas ruas se entregaram a algum tipo de vício, mas isso não faz com que eles sejam apenas o vício. Isso não desmerece e nem apaga as suas histórias.

Ali nas ruas estão pessoas que perderam tudo de material, umas tantas que foram expulsas de casa pelas próprias famílias, pois não aceitaram a sua orientação sexual. Há alguns que não souberam lidar com o convívio familiar ou cometiam delitos em casa e não foram aceitos. Há outros que carregam culpas tão dolorosas que os fez se afastar de tudo.

Muitos querem refazer a vida, mas dizem que dessa forma, como estão agora, não querem voltar para casa. Precisam primeiro provar para “quem os magoou”, ou a quem eles magoaram, que mudaram, estão bem, saíram e venceram, deram certo na vida. Mas, em muitos casos, isso parece estar bem longe de ser uma realidade.

Eu fico tão feliz quando vejo instituições tão sérias, como o Inaper (Instituto de apoio e orientação às pessoas em situação de rua), o Comida que Abraça e o Instituto de Promoção Social e Humana Darcy Ribeiro, se unindo para ajudar várias pessoas a realizarem esse sonho do “mudar a vida com dignidade”.

A Angélica Lugon, presidente do Inaper, disse que “é preciso ter fé, coragem e foco para se reerguer em uma sociedade como a nossa”. E são virtudes como essas que o programa que eles criaram, o PAD, com duração de cinco meses, proporcionou aos onze homens que viviam em situação de rua e hoje estão numa república.

Atuando com atendimentos psicológico e de assistência social, que fazem uma diferença gritante quando as pessoas se sentem desamparadas, perdidas, sem contato com família e, às vezes, nem identificação própria, mas tendo também palestras relacionadas ao mercado de trabalho e direitos humanos, curso de informática, culinária, inclusive com a Renata Camargos, do projeto Comida que Abraça, e, ainda, mentoria aos assistidos, pode-se dizer essa primeira edição do programa foi um sucesso.

Na formatura, a alegria de todos: formandos, que chegaram cheios de incertezas, e dos parceiros MPMG, CREAS e PBH e de vários apoiadores confirmou que esse é o caminho: educação, olhar para o outro, empatia, visibilidade, dignidade e ação.

Gustavo Martins, que participou da primeira turma do programa, falou uma coisa bem bonita: “provamos que somos capazes, que, com força de vontade e determinação, podemos conquistar muito mais”. E o legal disso tudo é que conseguiram provar para eles mesmos que “é possível”.

*Palestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural

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