Sentença de vida

17/06/2021 às 15:26.
Atualizado em 05/12/2021 às 05:12

Quando aquela mensagem chegou para mim, falando que um adolescente que tinha saído da casa de acolhimento havia escrito um livro contando parte da sua história, não pensei duas vezes: precisava ter acesso a esse material.

Por mais que a gente conviva e converse com as pessoas, ver as suas histórias num texto nos ajuda muito a entender as suas vivências e, para elas, possibilita o reconhecimento da sua identidade.

Lembrei da história de uma certa tribo africana que, quando uma mulher engravidava, as outras mulheres seguiam com ela para a selva, onde ficavam rezando e meditando até que dali surgisse a “canção da criança”, em que cada pessoa que nasce tem a sua própria e única canção. Ela é entoada em cada celebração, em seu nascimento, quando a criança começa a sua educação, se torna adulta, em seu casamento e em sua morte.

O sentido dessa canção é fazer com que aquela pessoa não se esqueça jamais de quem ela é, de onde ela veio, dos seus valores, quem a ama, quem são seus amigos.

Parece que o livro desse adolescente é uma forma de chamar para si toda a sua história e de reunir forças para buscar uma reconstrução ou reparação daqui para frente, que pode não ser especificamente na família de origem, mas naquela que terá origem a partir dele.

A educadora social Priscila Tomas (@tomaseducacao), que atuava junto ao sistema socioeducativo, onde o rapaz havia cumprido uma internação, falou com a sua amiga Ártemis (@artemisdabahia), que é arte-educadora e artista plástica, da vontade que ele tinha em escrever sobre sua vida. Ela se encantou pela ideia e se ofereceu para conhecer o menino.

Já na primeira conversa nasceu um forte vínculo entre pessoas e ideias e a Ártemis se ofereceu para fazer o projeto gráfico do material e ajudar em sua publicação.

Após uma sequência de eventos que aconteceram em sua vida desde a infância, com perdas familiares importantes, ele acabou se tornando um adolescente desassistido, perdendo o contato com os irmãos e sendo lançando num mundo de muita instabilidade e pouco suporte.

Alguns profissionais de instituições como Cras, unidades socioeducativas, casas de acolhimento, escolas e voluntários de instituições da sociedade civil passam a ser a melhor das referências para os jovens, quando eles se sentem soltos, perdidos, sem um rumo, aflitos. Em muitos casos, são pessoas que vão além do olhar profissional, se interessam e criam vínculos, gerando a empatia de que tanto falamos e às vezes poucos praticamos de maneira autêntica.

Relatar a sua história serviu de incentivo para que ele pudesse reler a sua própria vida. Hoje esse jovem ensaia para ser pai, já que a namorada está grávida, esperando por gêmeas. Os livros escritos por ele e ilustrados pela Ártemis já servem como uma forma de renda para essa nova família.

Podemos dizer que o jovem nutre grande esperança de escrever com as filhas uma história diferente da que viveu até então. Diferente em alguns aspectos, pois o amor que a mãe dedicou a ele e aos irmãos é forte e latente em suas memórias, mas as dores que se sucederam, vindas de um pai omisso e violento, de uma estrutura de sociedade desigual e de instituições cristalizadas ainda o assombram.

Só sei que a história que li naquele pequeno livro me sensibilizou. Não que eu não tenha tido acesso a outras que se assemelham em circunstâncias, mas que cada vida é um universo que desconhecemos. Partilhar um pedaço de tudo isso com a gente é mais do que permitir entrar um pouco em sua vida, mas é um grande convite para que a gente busque, também, relembrar a famosa “canção” que nos foi entoada quando nascemos, recordando que ela não é o prenúncio de um destino inalterado.

Não se trata, também, de uma sentença de morte, mas de vida.

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