Um dia abençoado

07/08/2020 às 08:26.
Atualizado em 27/10/2021 às 04:13

Fui convidado a dar uma palestra dentro de um presídio no dia do meu aniversário. Sempre, nessa data, gosto de desligar-me das redes sociais e ficar em casa, lendo, mais recolhido. Mas, naquela época, anos atrás, aceitei sem falar que aquela data era ainda mais especial para mim.

A experiência foi tão gratificante que decidi passar os meus próximos aniversários dessa forma, indo visitar alguma instituição social ou projeto em que atuo. E daí foi acontecendo: uma unidade socioeducativa, um presídio de mulheres gestantes, uma Apac, dentre outros.

Um dia veio o convite para ir a Barbacena, cidade mineira em que vivi lindas histórias. A Leopoldina, uma amiga bem querida, me convidou para dar palestra para um público misto de homens e mulheres, numa unidade prisional, dentro da escola que eles mantêm lá. Ela me explicou por alto quem era o público e disse que se eu tivesse alguma dúvida, poderia conversar com o psiquiatra da instituição para poder alinhar a abordagem.

Na correria, ainda sem entender bem o contexto, ao se aproximar a data, queria deixar preparado o tema e resolvo mandar uma mensagem para o psiquiatra. Ele me explica que em Barbacena há duas unidades diferentes de cumprimento de pena restritiva de liberdade. Um é o próprio presídio, no Centro da cidade, e o outro é um hospital psiquiátrico, antigo, para os casos de crimes cometidos por pessoas com sofrimento mental. Eu expliquei a ele que estava tudo encaminhado, pois presídio eu já estava habituado a falar, que para mim seria um problema se a palestra fosse no hospital.

A resposta do médico foi bem tranquila, me aquietando ao explicar que seria lá mesmo, não no presídio, mas naquele prédio antigo, com uma inscrição na porta de entrada dizendo: “manicômio judiciário”.

Minha preocupação foi ao ápice, pois as palestras mexem muito com o emocional de quem ouve, convidando-as às reflexões possíveis, mas eu não tinha experiência nenhuma com paciente psiquiátrico e pensei em desistir. O profissional me acalmou e disse que toda a equipe estaria lá para me apoiar, desceriam para o evento os psicólogos, os assistentes, além dos agentes. Se alguma coisa abalasse algum dos internos, que ele provavelmente se levantaria e, aí, os especialistas iriam ao seu acolhimento.

Para mim, não importa o fato de falar com alguém que esteja preso, o que me angustiava era como chegar àquelas pessoas e deixá-las bem, contribuindo da melhor forma que eu pudesse.

Pois chego à cidade, num dia 2 de agosto, véspera do meu aniversário. Vou para um hotel e no dia seguinte uma ambulância me busca, cedinho. Chego ao “manicômio” e sou recebido com muita atenção por especialistas e diretores. Eles me levam para o salão de palestras, onde já estão vários agentes. Nas minhas atividades eu sempre peço, em qualquer unidade, para que os custodiados estejam sem as algemas. Um a um vão chegando e se sentando, homens de um lado, mulheres do outro. Diferentemente do sistema convencional, que usam vermelho, os internos ali usavam um verde claro em seus uniformes, muitos com roupas de frio naquele “gelo” de Barbacena.

Não sei, e nem preciso saber, o crime de nenhum deles. Só fui alertado que um dos custodiados acreditava ser “Deus”. Comecei a minha fala, todos muito compenetrados. Por sorte coloquei uma historinha do Mickey no início, que eles adoraram.

Chegando ao fim da palestra, quando geralmente as emoções ficam mais afloradas, começo a contar a história de um casal em que a esposa tinha mal de Alzheimer. É um caso bem forte e tem uma mensagem linda. No meio da história um interno se levanta, um dos maiores que tinha lá, bem alto, e vai em direção à porta, que ficava ao meu lado. Dois agentes se levantam e vão atrás. Naquele momento, com a boca articulando as falas, eu fiz uma oração mentalmente para que acolhesse aquele homem, pois não sabia o que o havia impactado.

Terminei a palestra, me curvei para agradecer, enquanto pela porta entra o interno, com um bolo gigante em suas duas imensas mãos e todos começam a cantar parabéns. Eu não havia comentado que era meu aniversário e não sei até hoje quem me delatou, mas fiquei tão emocionado de ver todos juntos cantando e, depois, dividindo o bolo. Alguém grita de algum lugar: “discurso, discurso”. 

Agradeci a cada um, em meio ao choro, e pedi que Deus os abençoasse. Esquecendo que “deus” fazia parte da audiência naquele dia, ele olha para mim e dispara, com um pedaço de bolo na boca: “fui eu que criei tudo isso”.

Alguns anos depois voltei lá para a inauguração do novo espaço da escola, já que a sala de aula é responsável pela diminuição da medicação dos internos, melhoria da sanidade mental e um espaço onde eles são chamados de alunos.

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