Um saboroso recordar

21/01/2021 às 19:05.
Atualizado em 05/12/2021 às 03:59

Meu pai sempre foi muito trabalhador. Nascido em União dos Palmares, município de Alagoas, deixou de estudar para que pudesse ajudar na criação dos cerca de quinze irmãos. Era muito bom em vendas, tinha uma facilidade de cativar as pessoas e era muito amado. Foi propagandista de um laboratório farmacêutico (nem sei se ainda existe esse termo), ganhou muito dinheiro e também perdeu muito.

Quando perdeu o emprego, tivemos que mudar de Santa Luzia, cidade da Grande BH, para Maceió, já que tentaríamos uma nova vida por lá, onde meu pai tinha sua família que nos ajudaria nesse soerguimento (palavrinha bonita e trabalhosa). Minha mãe adiantou sua aposentadoria como professora, abrindo mão de alguns benefícios e fomos todos, de ônibus da empresa Gontijo, 32 horas de viagem, numa época em que nem ar-condicionado tinha nos veículos.

Dias difíceis, morando numa casa que era da minha avó, meu pai tentando empregos e não dando certo, até que depois de tantos fracassos (ainda vamos conversar um dia sobre esse tema), resolveu fazer lanches para vender para funcionários de um banco da cidade. Lembro do seu carro, uma Brasília muito velha, toda corroída pela “maresia” – como ele dizia, em que ele levava várias caixas de isopor com os lanches do dia e em leiteiras enormes ele punha os sucos, tudo feito diariamente na nossa casa. 

Em um Natal em que meu pai não tinha dinheiro para comprar presentes, mas não sei como ele se virou e trouxe-nos um “ferrorama”. Minha mãe, mais racional, o repreendia, por gastar num momento em que não podíamos. Lembro bem da alegria dele, ainda mais intensa que a nossa. 

Depois de muitas tentativas, quando percebemos que lá em Maceió estava ainda mais complicado de se viver, voltamos para Santa Luzia. Minha única irmã ficou, pois estava trabalhando e se casaria, e meu irmão mais velho, que voltou depois. 

De início seria necessário morar na casa dos meus avós maternos, uma experiência de “altos e baixos”. Minha avó era uma dedicação, uma generosidade sem igual. Ela nos defendia e nos protegia. 

Fui estudar o ensino técnico, equivalente ao médio, em Belo Horizonte, na E. E. Técnica e Industrial Prof. Fontes, no bairro Horto. Acordava cedo e meu lanche, feito por minha avó, já estava embalado num papel de pão. Ela, em pé no portão da rua, vigiando o ônibus que, quando passasse do outro lado da ponte, já era a hora de ir para o ponto de ônibus.

Eu descia na av. Cristiano Machado e ia a pé, numa pista longa da av. José Cândido da Silveira, já que não tínhamos dinheiro para o segundo ônibus, até chegar na escola, onde eu fazia o curso de Técnico em Eletrônica. Só fui descobrir que não era a minha praia quando, após levar muitos choques e estourar pequenos transformadores, um professor me perguntou: é isso mesmo que você quer?

Na hora do almoço, não tinha dinheiro para pagar a refeição, mas nem era necessário, pois o sanduíche da minha avó era de queijo e carne moída e sustentava para o dia todo. O sanduíche que eu levava era famoso, pois toda vez que eu abria minha mochila dentro da sala os outros alunos já gritavam: “hoje tem lanche feito pela ‘vó’, né?”. O cheiro daquele lanche invadia a sala toda e eu morria de vergonha. Mal conseguia entender que os outros deviam é ter inveja de eu ter uma avó assim.

Não vou negar que nessa fase eu tinha meus momentos de raivas, questionamentos à minha mãe, incompreensões daquela situação e revolta. Mas tudo passou e eu sei bem porque: somos uma família e isso é muito forte na nossa criação, de referências, de presença, amor.

Quando comecei a dar aula numa faculdade, ainda morava na casa da minha mãe e pegava um ônibus, antigo 5510 A, de Belo Horizonte para Santa Luzia, que passava às 22h50 na av. Antônio Carlos. Às vezes ele cortava todos os outros ônibus e ia embora, deixando-me a opção de aguardar o próximo, que só passava às 23h30. 

Um dia minha mãe resolveu fazer vestibular, foi aprovada e começou a estudar na mesma faculdade em que eu dava aula. À noite, quando eu ainda estava em sala, terminando um assunto com meus alunos, ela abria a porta da sala e pedia à pessoa sentada ali, mais próximo da entrada, que me entregasse uma sacolinha. Ali dentro, um sanduíche, uma das saborosas formas que ela tinha de me dizer “eu te amo” todos os dias. 

Recordar tem, na formação da própria palavra, a ideia de fazer passar de novo pelo coração, mas serve para nos recobrar a lucidez, não nos deixando esquecer o percurso que fizemos até aqui e nos ajudando a entender quem somos e o que fazer com isso.

  

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