Viver! É isso que fazemos

17/12/2020 às 19:31.
Atualizado em 27/10/2021 às 05:20

Foi em 19 de dezembro de 2010 que tudo teve início, ou melhor, que a primeira ação aconteceu levando o nome de “Tio Flávio Cultural”. Há 10 anos não tínhamos a mínima ideia, e nem planejávamos, chegar a 80 grupos de ação contínua, em 30 áreas de atuação diferentes e contando com mais de mil voluntários fixos. 

Um movimento que não existe juridicamente, não tem conta bancária, não recebe doação nem subsídio financeiro, não tem vinculação partidária e nem religiosa. Porém, para o tanto de “não” existe um tanto superior de “sim”: temos pessoas que dedicam seu tempo, habilidade e boa-vontade para fazer parte na transformação social que tanto precisamos. 

O texto que vem a seguir será usado num vídeo que a Ray Oliveira está editando para comemorarmos todos esses anos de trabalho. Foi escrito por mim e terá a locução do Rondinele, um jovem que era morador de rua e ainda nessa situação, frequentando um albergue público e o centro POP, nos pediu, através de um voluntário, um curso de locução. Em parceria com a Escola de Locução Beth Seixas, hoje Grupo Seixas, ele conseguiu estudar e ser certificado como locutor profissional. 

Desde a participação do Rondinele às fotos, que simbolizam tanta gente que nos apoia, até mesmo aqueles que sequer nelas aparecem, mas que apesar dos seus problemas pessoas, desafios diários, não deixa de ir vai lá e fazer muito bem o que deve ser feito. 

Ao chegarmos aos 10 anos, agradecemos voluntários e seus familiares, parceiros, pessoas, entidades e organizações sociais que abrem espaço e o coração para que possamos atuar, pessoas com quem criamos vínculos e a quem respeitamos muito, ONGS, movimentos voluntários e tantos outros que, independente de suas próprias dificuldades, não nos deixam sentir sozinhos. 

O que fazemos?

Se um dia nos pedirem para falar, em duas palavras, o que a gente faz, fica até difícil de responder.

A gente assiste o sorriso no olhar de uma criança, num abrigo, que tirada do convívio dos pais, tem na gente a sua família;

Nós conversamos com homens que vivem nas ruas. Mas não conversamos como homens que vivem nas ruas, mas como homens, humanos, igualzinho a todos nós, com seus percalços, atropelos e vitórias;

Tem dia que a gente entra em hospitais, para em frente a uma pessoa, que está ligada a uma máquina, segura a sua mão enquanto outros de nós estão tocando músicas para fazer passarem as quatro horas da hemodiálise;

Há aqueles dias em que a fragilidade do corpo manda toda a força para o olhar de um idoso, numa cadeira de rodas em uma instituição, enquanto os outros se levantam do sofá para dançar com a gente, numa alegria sem igual;

A gente presencia o choro de uma mãe presa no sistema, que encontra o choro da filha que a visita, alimentando o nosso choro também;

E tem aqueles dias em que as crianças chegam para a gente, chamando de tio ou tia, perguntando abertamente: “você volta, né?”

A gente percebe os adolescentes das escolas e dos programas de jovens aprendizes, felizes em terem uma oportunidade, e que vêm nos abraçar no final de uma palestra, se emocionando por descobrirem que não estão sozinhos em suas angústias;

E a alegria do outro adolescente, que mesmo privado de liberdade, tem a escolha e a iniciativa de, com a sua arte e sensibilidade, criar presentes para serem entregues aos nossos idosos;

Nós conversamos com mulheres que se prostituem e nelas encontramos mais que prostitutas; Na verdade, a gente nem encontra a prostituta. 

Nós defendemos animais e pessoas, pelos seus direitos de serem quem são, numa relação respeitosa entre todos. 

Mas tem aqueles dias em que a gente entra em creches e projetos sociais voltados à infância e lá viramos crianças, ou deixamos a nossa (criança) livre por instantes. 

Presenciamos momentos gratificantes, em que levamos instrumentos musicais e os homens, que vivem nas ruas, acolhidos à noite num albergue, soltam a sua voz e nos encantam com a sua arte;

Nossa... tem dia em que mulheres cegas nos recebem eu sua casa, para uma ação musical em que uma delas, também surda, sente a vibração do som colocando sua mão na corda vocal da cantora;

E as crianças que nos olham, tendo perdido todo o seu cabelinho numa quimioterapia, com a cor pálida no corpo, nos chamando para brincar.
Brincar? É tem dia que a gente vai brincar. E devem ser esses os melhores dias que a gente vive.

Tem dia que a gente não sabe quem somos nós ou quem são todos eles, de dores e sonhos tão semelhantes, mesmo que não sejam iguais.

Na verdade, boa parte dessas pessoas não nos conhecem e nem nós a elas. Às vezes, nem nós a nós mesmos. Mas elas nos ajudam a achar a resposta à pergunta que tanto nos fazem: o que fazemos, aqui, nessa vida, com tanta gente, numa busca desesperada pela felicidade e sentido?

Fazermos viver...

 

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por