Dona Ivone Lara: e lá se foi a primeira-dama do samba

18/04/2018 às 20:36.
Atualizado em 03/11/2021 às 02:25


Dona Ivone Lara se foi na última segunda-feira, aos 97 anos. O título de primeira-dama foi dado pelo pesquisador e compositor Hermínio Bello de Carvalho e foi uma forma de reconhecimento a quem dedicou quase um século à música e à cultura brasileira. Preta, pobre, mulher, no Brasil, claro que Dona Ivone não teve vida fácil e foi obrigada a percorrer caminhos tortuosos para ter seu talento reconhecido. Conseguiu lançar seu primeiro disco já com 56 anos. Antes disso, para driblar o machismo e o preconceito, chegou a apresentar suas composições usando o nome de primos e amigos.

Não foi só os preconceitos que causou a entrada tardia de Dona Ivone no mundo profissional do samba. Ela optou em vencer outros desafios antes de brilhar nas passarelas. Filha de pais músicos e pobres, compôs seu primeiro samba com 12 anos, mas o esforço da família era vê-la formada e com uma profissão. E assim foi. Aos 17 anos, entrou para o curso de enfermagem e dedicou sua vida adulta à área da saúde. Trabalhava no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde permaneceu por 37 anos até se aposentar. Especializada em terapia ocupacional, Ivone trabalhou no Serviço Nacional de Doenças Mentais com a doutora Nise da Silveira, médica que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil.

Um talento peculiar fez de Ivone uma referência feminina do samba, junto com Chiquinha Gonzaga. Foi a primeira mulher a fazer um samba-enredo numa escola, o Cinco Bailes da História do Rio, em 1965. Suas composições foram gravadas por intérpretes como Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Beth Carvalho e tantos outros. Entres suas composições de sucesso estão “Acreditar”, “Sonho Meu”, “Sorriso Negro”, “Alguém me avisou”, “Alvorecer”. Desconstruindo paradigmas, Dona Ivone além de enfrentar os preconceitos de gênero, soube valorizar aspectos de sua ancestralidade, com referências ao jongo e ao candomblé, contribuindo para a afirmação do povo negro e suas raízes africanas. “Negro é a raiz da liberdade”, cantava.

Dona Ivone Lara também era generosa com os mais novos e isto criou uma relação dela com Minas Gerais. Em 2007, gravou a faixa “Nasci pra sonhar e cantar” do álbum de estreia do cavaquinhista mineiro Warley Henrique. Em 2009, realizou um show memorável no Palácio das Artes, dentro do projeto “Samba do Compositor”, idealizado na época pelos jovens sambistas Dudu Nicácio, Miguel dos Anjos e Mestre Jonas.
Em um momento de reflorescimento do Carnaval de rua de Belo Horizonte, reverenciar a obra e a memória de Dona Ivone Lara é fundamental para que as novas gerações mantenham seu legado. Temos em Minas Gerais exemplos de sambistas que percorreram o mesmo caminho da autora de “Sonho Meu”. Dona Elisa e Mestre Conga talvez sejam a síntese dessa trajetória de luta do povo negro na arte. Integrantes da velha guarda do samba, enfrentaram barreiras hoje inimagináveis para fazer valer o direito à arte e à cultura. Ambos gravaram discos depois dos 60 anos e ainda lutam para serem reconhecidos.

O Governo de Minas Gerais começa a fazer sua parte ao incluir Dona Elisa entre os homenageados da Medalha da Inconfidência Mineira, a ser entregue no próximo sábado em Ouro Preto. Outro na lista é o sambista Fabinho do Terreiro. Dois negros, conhecidos nas rodas de samba das periferias da capital mineira, mas que merecem o seu lugar na história da cultura mineira. 

  

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