Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

É possível uma pessoa negra ser feliz no Brasil?

Publicado em 11/01/2023 às 06:00.

Ser uma pessoa negra feliz no Brasil é um ato de resistência. Confesso que é muito difícil. Lutamos cotidianamente para sobrevivermos e para não perdermos a sanidade que ser feliz acaba sendo um extra, um complemento, algo secundário. Constatar que pessoas brancas têm tratamento vip na nossa sociedade é, no mínimo, revoltante.

Os últimos acontecimentos no Brasil mostram o que o rapper Emicida entoa na linda, elucidativa e sensível canção “Ismália”: “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”. Os bolsonaristas antidemocráticos, golpistas, terroristas e criminosos que invadiram e depredaram o Congresso Nacional, o Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília-DF, são os representantes da branquitude, que ostenta os privilégios decorrentes do sistema escravocrata brasileiro.

Ressalto o termo “representantes” porque havia pessoas negras nas cenas execráveis que vimos e que podem ser revistas nas redes sociais e nos noticiários. Essas pessoas não brancas estavam a serviço da branquitude. Por isso, não vimos as forças de segurança agindo da mesma forma como agem em manifestações de trabalhadores, professores, de pessoas negras, indígenas etc.

Como ser feliz vendo policiais tomando água de coco e tirando fotos enquanto a branquitude terrorista criminosa invadia prédios públicos, quebrava o patrimônio público, destruía obras de arte, roubava documentos, entre outras atrocidades? Mais triste ainda será testemunhar que muitos sairão impunes.

Outro acontecimento recente me fez pensar sobre essa temática. O influenciador, escritor e roteirista Adalberto Neto denunciou um suposto caso de fraude em um sistema de cotas e recebeu uma notificação da Justiça. Ele teve que apagar as postagens que fez, mostrando a cara da suspeita. Quantos rostos negros são expostos, inclusive de inocentes, nos noticiários e na internet e nada acontece com quem faz a exposição?

Em uma postagem explicando sobre o ocorrido, Adalberto Neto diz: “Eles venceram dessa vez e eu tive que apagar os vídeos. E isso dói demais porque me dá uma sensação de impotência. Aquela sensação que convive com a gente e que pessoas brancas – por mais que se acham pardas – nunca vão saber o que é. É uma sensação de você gritar e não estar saindo voz, de você gritar e ninguém te ouvir, de você gritar e até te ouvirem, mas não darem a menor importância para o que você está falando”.

Não foi em vão o que o Adalberto Neto fez. Tanto não foi que o Ministério Público vai investigar a possível irregularidade na aprovação da candidata, que chegou a ter sua autodeclaração recusada. Mas só nós, pessoas negras, sabemos (e pagamos) o preço por tentarmos romper as barreiras do racismo estrutural. Emicida sabe que “A felicidade do branco é plena” e que a “A felicidade do preto é quase”. Eu também sei, Adalberto sabe e, de um jeito ou de outro, todas as pessoas negras do Brasil sabem disso.

Eu sei, literalmente, o que é gritar e ninguém me ouvir. A gente convive cotidianamente com isso, sobretudo nos ambientes corporativos e profissionais. Não estou fazendo uma metáfora. A somatória disso tudo culmina numa tristeza que pode até matar. Mas descobri que se nós deixarmos que isso aconteça, os racistas vencerão de vez. Uma mulher negra me disse recentemente, “ser feliz é obrigação ancestral”. Então, pretos e pretas deste país, ser feliz, além de um dever, é também a nossa salvação.

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