Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

O retrato da fome emoldurado pelo racismo

Publicado em 25/10/2021 às 21:34.Atualizado em 05/12/2021 às 06:07.

A fome voltou. Quase 20 milhões de brasileiros estão vivendo, ou melhor, sobrevivendo em situação de extrema pobreza. Isso significa que hoje 20 milhões de pessoas no nosso país não têm o que comer. Quando vi no noticiário que uma mãe tinha sido presa por furtar R$ 21,69 em comida para os seus cinco filhos, lembrei-me da escritora Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de Despejo. Assim como ela, pensei: “A fome também serve de juiz”.

Ainda que representada de olhos vendados, a justiça deve enxergar a incongruente conjuntura que faz com que um país que alcança níveis elevadíssimos em exportação de alimentos tenha uma população passando fome. Podemos até desligar a TV, rolar o feed das redes sociais, mas a imagem de pessoas revirando o lixo para encontrar alimentos ou disputando ossos é forte demais para passar despercebida. Quem ignora a realidade nunca conheceu o significado da palavra empatia. E nunca passou fome, diria Carolina Maria de Jesus.

Em seu livro, a autora mostrou o seu dia a dia como catadora de papel na favela do Canindé, em São Paulo, e como a fome era uma personagem presente, irritante, desagradável e real. Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras escritoras negras do país, mostrou ao mundo o retrato da fome. Nele figuravam: ela, como mulher negra, e a favela, como o espaço marginalizado, periférico. Seis décadas depois da publicação da obra, o retrato é o mesmo.

Um estudo feito pela Integration Consulting e apresentado no Latam Retail Show comprova o que já é fácil de inferir: 76% das pessoas que passam fome são negros, e a grande maioria vive em favela. E não pensem que essa situação é apenas consequência da pandemia e da crise econômica. O racismo estrutural moldou essa realidade. Sem apoio desde a dita abolição, são nas grandes crises que a ausência de políticas públicas de inclusão, de valorização da diversidade e de empoderamento da população negra torna-se ainda mais evidente.

Diante da ineficiência do Estado, a solidariedade ocupa o seu lugar. São as doações de alimentos e de cestas básicas, por meio de ações organizadas por pessoas, empresas e instituições filantrópicas e/ou religiosas, que amenizam os estragos que a fome provoca. Entretanto, essas ações não conseguem (nem devem) dar conta de uma obrigação que é estatal. Caridade e política de Estado de combate à fome não se confundem.

“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”, escreveu Maria Carolina de Jesus, que ainda ensina onde estão os quartos de despejo e quem são os despejados em cada canto deste país.

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