Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

Para a mulher negra, ser amada é um privilégio

Publicado em 14/06/2022 às 06:00.

Andreia Pereira*

Fazer novena de Santa Teresinha, colocar Santo Antônio de cabeça pra baixo e seguir todas as dicas dos clássicos livros de autoajuda que explicam por que os homens amam as mulheres poderosas e o que toda mulher inteligente deve saber para lidar com homens e conquistar um grande amor. Numa perspectiva heterossexual, não faltam simpatias, conselhos, instruções e ensinamentos para as mulheres conquistarem um homem. Sem desrespeitar a fé e as crendices populares, só um milagre mesmo para fazer com que as mulheres pretas deste país sejam amadas e levadas ao altar. Sei que não está fácil pra ninguém, mas, para a mulher preta, a história é outra. 

Por quase quatro séculos no Brasil, o negro era uma propriedade de quem o detinha. Isso se estendia aos corpos das mulheres negras. Tidas como objetos, as escravizadas eram constantemente estupradas. Homens casados realizavam seus desejos sexuais contrários à moral e à religião com as mulheres negras escravizadas, o que não era feito com as esposas brancas, com as sinhás. O corpo da mulher negra, durante a escravidão, também era estuprado por homens solteiros, que não “podiam” desposar suas noivas antes do casamento. 

Com o fim da escravidão, a mulher negra continuou sendo violentada. Não são raros os produtos midiáticos que apresentaram e ainda apresentam mulheres negras estereotipadas. Assim, no imaginário coletivo, além de não serem consideradas bonitas por não possuírem características eurocêntricas, a mulher negra é aquela mulher voluptuosa, fogosa e que não serve para o matrimônio. 

É óbvio que, se perguntarmos aos homens se eles se casariam com uma mulher negra, majoritariamente, a resposta será sim. Infelizmente, não é o que os números dizem. Dados do último censo, de 2010, mostram que 74,5% dos brancos se casam com brancos e que, entre as mulheres com mais de 50 anos, as mulheres pretas são a maioria no quesito “celibato definitivo”, ou seja, nunca viveram com um cônjuge. 

Nem é preciso fazer uma pesquisa quantitativa para enxergar a realidade. Olhe ao seu redor: quantas mulheres negras você conhece que estão casadas ou que estão em um relacionamento sério? Quantos jogadores negros você vê casado com uma mulher negra? E os cantores negros se casam com quem? Somos preteridas por todos, pelos homens negros e pelos homens brancos. “Branca para casar, preta para fornicar”, conhece esse ditado? Eu conheço. E lamentavelmente, por diversas vezes, por carência, talvez, me sujeitei a ser o divertimento de alguém. 

E não me venha dizer que o amor não tem cor. Tem sim. E na nossa sociedade ele não é preto. Na verdade, o amor é uma construção social que emerge, no Brasil, de um contexto histórico patriarcal, machista e racista. Assim como não é possível que a branquitude não seja racista tendo sido estruturada numa sociedade racista, também é impossível que as relações no campo da afetividade e da sexualidade não sejam atravessadas pelo racismo estrutural. Não sejamos iludidos. 

Já que é assim, este texto é um lamento, um desabafo mesmo. E só consegui escrevê-lo depois de cicatrizada a ferida da solidão. Ainda dói, confesso. Mas adotei para mim, como lema de vida - depois de muito quebrar a cara -, o seguinte ditado (com as devidas adaptações): antes só (linda, maravilhosa, feliz, livre, independente, inteligente, viajante, corajosa e determinada) do que mal-acompanhada. Não me tornei uma pessoa rancorosa. Continuo acreditando no amor, porém, primeiramente e sobretudo, no amor-próprio. 

*Doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

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