Perspectiva RacialUm espaço para mostrar como o racismo se revela no cotidiano, a fim de que toda a sociedade compreenda a importância de se engajar nessa luta. Andreia Pereira é doutora em Literatura (UnB), servidora pública federal, jornalista, professora, pesquisadora e palestrante.

Tempo de quadrilhas

Publicado em 31/05/2022 às 06:00.

Pode ficar tranquilo. Não vou falar dos grupos que se reúnem para práticas de atividades criminosas ou quaisquer atividades tidas como ilegais. Assuntos sobre esse teor, nos asfixiam todos os dias. Preciso de um respiro, por isso, resolvi falar de um tema menos sufocante para mim nos dias de hoje: as quadrilhas juninas. Amo dançar forró, sempre amei. Mas lembro que na escola, bastava chegar o mês de junho para a minha ansiedade explodir. Quem será o meu par? Quem vai querer dançar comigo?

Se você é uma pessoa branca, talvez não esteja compreendendo a problemática. Mas se você é uma mulher negra, não tenho dúvidas: você me entende. Fui uma criança e uma adolescente dos anos de 1990. Sou uma sobrevivente do racismo institucional no ambiente escolar. E na época das festas juninas, um misto de alegria, ansiedade e tristeza sempre me acometia. Alegria por querer fazer algo que eu sempre gostei, que é dançar. Ansiedade por ficar aguardando algum colega aceitar dançar com a menina preta. E tristeza por sempre ter sido alvo das piadinhas e dos comentários racistas, sobretudo nesse período.

Dançar quadrilha era, na verdade, um sofrimento. E não dançar também. E quando eu encontrava um par (muitas vezes obrigado pela professora), outra aflição se instalava. O que eu ia fazer com o meu cabelo? E onde eu ia achar um chapéu que coubesse o volume do meu cabelo? Ser a noiva? Nem pensar! Coitada da minha mãe. Eu colocava ela doida! E tenho certeza que ela também sofria comigo. Ela compreendia a minha dor.

Abordar essa temática hoje é uma provocação. Gostaria realmente de saber como essa situação é tratada atualmente. Será se os professores pensam nisso? Há uma política que direciona a discussão sobre o racismo no âmbito escolar? Se eu tivesse filhos, sobretudo uma filha, eles só seriam matriculados numa escola que se comprometesse a ser antirracista. E penso que todos os pais, independentemente da origem étnico-racial dos seus filhos, deveriam também lutar por uma escola antirracista. São inimagináveis a dor e os traumas que o ambiente escolar racista pode causar numa criança negra.

A escola, em vez de ser o ambiente acolhedor que se espera, pode se tornar um espaço hostil para crianças negras. No meu caso, criei estratégias para driblar o racismo. Uma delas era ser sempre uma das melhores alunas ou, pelo menos, tentar. Com isso, eu ganhava a admiração dos professores e de colegas. Hoje vejo o absurdo disso. Sempre moldei as minhas atitudes para enfrentar o racismo, quando, na verdade, é a sociedade racista que tem mudar.

Hoje, aos 35 anos, com as feridas juninas cicatrizadas, desejo que todas as meninas negras que  gostam de dançar quadrilha possam, de fato, vivenciar momentos de alegria e diversão nesta época do ano. E para aqueles que ainda exclamam que o racismo acabou, eu grito ainda mais alto: é mentira!!!

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