No fundo da mochila

Publicado em 14/04/2022 às 06:00.

Marcelo Batista*

Abril de 2022. Momento de finalmente devolver as provas corrigidas. Depois de longos dois anos, as provas novamente no papel. Quase 300 delas corrigidas dolorosamente ao longo de duas semanas, canetas novas falhando e horas de sono a menos. Tudo estava prontinho para ser entregue e lançado. Foi o primeiro contato, depois de muito tempo, com o restinho da borracha de uma questão apagada em cima da hora, um cálculo das provas de física no cantinho da folha: detalhes que eu sentia falta na rotina do distanciamento mais rigoroso e das provas somente digitais.

De uma maneira geral, as notas estavam semelhantes. Mesmo que no retorno ao presencial tivesse ficado mais difícil de colar, de buscar as respostas na internet ou de tentar obter alguma vantagem ilícita, afinal, as provas voltaram a ser aplicadas no modelo tradicional. Foi a chance também de ver e sentir a textura da letra deles: o aluno que escreve com força e marca o outro lado da folha, o que escreve com a letra grande, que mal cabe no espaço disponível. Estava tudo ali, de novo. Delicioso, mas cansativo, o processo de correção de provas.

Entre todas as notas baixas, uma me incomodou um pouco mais, um 0,5 em 7,0. Era a menor nota da série e eu ainda não conhecia aquele aluno pelo nome. Cheguei na sala para entregar as provas, uma a uma, como uma forma também de associar melhor os nomes e os rostos, que com as máscaras ficam ainda mais escondidos. Quando chegou o momento do dono da nota 0,5 ele veio buscar a própria prova. Pequeno, franzino e acuado ele recebeu a nota, como quem recebe um castigo. Ele era um bom menino, mas teve dificuldade. No pouco contato que tivemos, dava para perceber que ele não merecia tão pouco. Ou merecia?

Disfarcei para não entrar em contato diretamente com ele. Qualquer fala poderia ser o suficiente para expor a nota baixa para o restante da turma e me mantive discreto e distante, mas olhei de longe. Na cadeira, ele dobrava a prova em pedacinhos, colocava no fundo da mochila. Da mesma parte da mochila, tirou algumas outras provas, também dobradas, possivelmente com outras notas baixas. Estavam escondidas no canto da mochila. Escondidas dele mesmo, da família, dos colegas, de todo mundo. Quis conversar com ele, mas ainda não tive a oportunidade. Quando nossos laços encurtarem, vou comentar sobre a nota e me apresentar para ajudar um pouco mais nas outras provas. O aluno não sabe, mas a culpa não é dele. A culpa é de tudo que vivemos desde 2020. A vontade era dizer que tudo vai passar, mas eu ainda não disse.

Aquela prova dobradinha lembrou minhas provas de física, matemática ou química que eu recebia no ensino médio. Dobrava a pontinha da folha para que ninguém visse a minha nota baixa. Na época não sabia que era normal, que a média baixa poderia acontecer, mesmo nas melhores famílias. Eu não era mais burro que ninguém. Na verdade eu era também só um menino acuado, com mais uma prova dobradinha na ponta, pronta para ser guardada no fundo da mochila.

Compartilhar
Ediminas S/A Jornal Hoje em Dia.© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por