Um problema embaixo do tapete

Publicado em 17/03/2022 às 06:00.

Marcelo Batista*

O tema da redação era a erotização infantil na sociedade brasileira. Enquanto  eu expunha os possíveis argumentos para o texto, uma aluna ficava escondida, no canto da sala. Estranhei no início, mas pensava que a reação era somente desinteresse, tão comum entre os alunos daquela idade. Estava enganado.

Depois da minha discussão, a aluna me chamou fora da sala, com os olhos lacrimejando. Disse que não conseguia escrever sobre aquele assunto. Inicialmente insisti, pedi que tentasse produzir, pois o tema não era tão difícil. Ela comentou que o problema não era a escrita. Disse que sofria abusos sexuais desde cedo de um tio, muito próximo da família e que não conseguiria escrever sobre aquele tema. Ela já havia tentado falar sobre isso com parentes, mas eles não deram muita atenção. Permiti que ela ficasse sem fazer a redação. No meu caso era apenas um texto; no dela, anos de abuso.

Lembrando dessa história, escutei nesta semana a polêmica sobre o tema do filme do humorista Danilo Gentili “Como se tornar o pior aluno da escola”. Acusado por apologia à pedofilia, o Ministério da Justiça decidiu solicitar a retirada do filme do catálogo da Netflix e das demais plataformas de streaming. A produção foi aos cinemas em 2017, mas somente nos últimos dias o debate se acendeu. Na cena do referido filme, o personagem interpretado por Fábio Porchat insinua a dois jovens que o masturbassem, numa aparente troca de favores. A cena provocou polêmica nas redes sociais e foi vista por muitos como apologia à pedofilia. Os humoristas rebateram essa tese, afirmando que a discussão foi retirada do contexto e que o filme tinha o objetivo, no caso, de denunciar o comportamento padrão dos indivíduos pedófilos.

O filme mostra uma situação extremamente problemática, pois refere-se aos mais diversos abusos e sobre um tema que é praticamente proibido no cotidiano: o abuso sexual, tão comum no ambiente doméstico.Toda a discussão levanta um debate muito válido na sociedade contemporânea, pois depois de quase dois anos de isolamento, muitos alunos voltaram à socialização. O ambiente escolar sempre foi um local importante para que as crianças pudessem se revelar e até mesmo para denunciar os mais diversos abusos. Mas e durante o período de isolamento: até que ponto essas atitudes podem ter se intensificado e até hoje não foram descobertas?

Uma coisa é fato: com o retorno das aulas presenciais foi possível notar com mais clareza o aumento de problemas psicológicos: ansiedade, depressão, dificuldades de socialização. É o momento de discutir sobre o que foi vivenciado no isolamento e o que deve ser feito para superar os traumas diversos. Até que ponto as instituições de ensino estão preparadas para tratar de todas as cicatrizes deixadas pela pandemia? Muito mais do que a polêmica de um filme desnecessário e de uma cena desagradável, é importante refletir sobre os diversos aspectos que envolvem o lado psicológico dos estudantes.

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