Acordo de Escazú é ignorado: “Brasil está atrasado em direitos humanos”

Publicado em 07/05/2022 às 06:00.

Ester Pinheiro*

O Brasil é o quarto país no mundo onde mais ambientalistas são assassinados, de acordo com relatório da ONG Global Witness de 2021. A maioria das vítimas são ativistas que trabalham com comunidades em torno de questões de terra, meio ambiente e principalmente povos indígenas em defesa pelo seu território. Apesar dessa realidade, o Brasil não ratificou o Acordo de Escazú, que protege defensores ambientais, e somente participou como país observador na primeira COP Escazú que aconteceu em Santiago, Chile, nos dias 20 a 22 de abril deste ano. Segundo especialistas, o Brasil está atrasado em direitos ambientais e humanos em relação a outros países da América Latina. O representante brasileiro na COP foi o Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação da embaixada no Chile, Leandro Rocha de Araújo, que não quis dar entrevistas.

Piratá Waurá, do povo Wauja do Território Indígena do Xingu MT, é professor, fotógrafo, cineasta e coordenador de alguns projetos culturais em sua comunidade. Para ele, o território indígena do Xingu está sofrendo mais ameaças durante o governo Bolsonaro. “Sentimos cada vez mais um avanço do desmatamento e da plantação agrícola. O governo está focando na exploração do território indígena  e isso nos deixa com muito medo. Durante a pandemia começou uma retirada de madeira ilegal dentro do Xingu, aproveitaram bastante da crise e ainda continuam mesmo com a presença da polícia federal”.

O Brasil foi um dos primeiros países a assinar o Acordo de Escazú, em 2018, e sua ratificação requer confirmação da Presidência da República, devendo depois ir ao Congresso. No entanto, quase quatro anos após a assinatura pelo Brasil, o processo de ratificação está estagnado, e segundo a advogada ambiental Viviane Romeiro, existe pouca perspectiva de avanços concretos.

Quase quatro anos após a assinatura pelo Brasil, o processo de ratificação está estagnado, com pouca perspectiva de avanços concretos


“Infelizmente a atual administração do Governo Federal não apresenta evidências claras sobre avanços concretos para a ratificação do Acordo de Escazú, e é fundamental ampliar o debate sobre a relevância desse tratado e fomentar espaços para diálogo. Ratificar o Acordo é um passo importante para a promoção de uma governança mais robusta orientada a superar a crise socioambiental a qual vivenciamos”, disse a especialista.

O que foi tratado na COP Escazú?

Os 12 Estados partes do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Questões Ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú, bem como os países observadores que participaram da primeira reunião da Conferência das Partes (COP 1) do Acordo, concluíram no dia 22 de abril a reunião na sede da Cepal, em Santiago do Chile. A reunião incluiu o primeiro aniversário da entrada em vigor do tratado Dia Internacional da Mãe Terra, ambos comemorados em 22 de abril. No evento, foi aprovada uma Declaração Política em que os países que ratificaram o acordo reafirmam o tratado como instrumento promotor do desenvolvimento sustentável e ferramenta fundamental de governança para o desenvolvimento de melhores políticas públicas na região.

“O Acordo de Escazú é muito importante, principalmente porque é o primeiro tratado na América Latina e no Caribe para resolver questões complexas. Mas obviamente é só um passo que temos que continuar construindo e ainda há muito a construir”,  comenta Carlos de Miguel, chefe da Unidade de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável da Cepal.

O Acordo de Escazú tem o foco em gerar uma maior proteção dos direitos de acesso à informação, participação social e acesso à justiça em temas ambientais para os países da América Latina e Caribe. Representa também uma maior proteção aos defensores ambientais, já que é o primeiro acordo internacional a estabelecer dispositivos específicos para esse grupo. O Acordo traz maior estabilidade, ao promover a democracia ambiental e diminuir os conflitos ambientais, bem como promover segurança jurídica.

O Acordo de Escazú tem o foco em gerar uma maior proteção dos direitos de acesso à informação, participação social e acesso à justiça em temas ambientais para os países da América Latina e Caribe


Em seu discurso, a ex-secretária executiva da Cepal, Alicia Bárcena, destacou que a COP de Escazú deve focar na proteção dos povos indígenas. “Parabenizo os países que ratificaram o Acordo de Escazú e espero que a COP de Escazú seja dedicada aos povos indígenas, os guardiões silenciosos da Terra e da biodiversidade”, disse. “O Acordo de Escazú é exemplar porque é um exemplo palpável do compromisso da América Latina e do Caribe com o multilateralismo, mas um multilateralismo diferente, onde os acordos são construídos conjuntamente, com governos e sociedade”, acrescentou.

“O Brasil está atrasado em direitos ambientais”

O Brasil enfrenta uma das maiores crises socioambientais. Segundo Viviane Romeiro, estamos observando o desmonte das políticas públicas ambientais e incontáveis prejuízos para a proteção do meio ambiente e promoção do bem-estar social. “A atual administração do Governo Federal tem sido acusada pelo desmantelamento da legislação ambiental, provocando o aumento das taxas de desmatamento, sobretudo na Amazônia, e de outras atividades predatórias e ilegais”.

Para Piratá Waurá, o agronegócio e as plantações de soja também geram riscos para a população indígena. “Eles desrespeitam as leis, jogam veneno dentro do nosso território, na beira do rio do Xingu e isso contamina as águas, a terra e os nossos corpos”.

O Brasil tem um sistema de entrega de informação ambiental a sociedade. A Lei de Acesso à Informação (LAI), bem como a Lei de Acesso à Informação Ambiental são instrumentos fundamentais na regulamentação da transparência pública do Brasil. Entretanto, para Ribeiro, na prática, existem vários desafios que ameaçam a democracia ambiental. “O descumprimento de tais leis é crescente nos últimos anos e é preocupante”, comenta a especialista.

Segundo Ribeiro, a ratificação do Acordo de Escazú pelo governo brasileiro poderia contribuir na melhoria de práticas de participação social, transparência e acesso à justiça em temas socioambientais. Romeiro comenta que a contribuição brasileira poderia vir, não somente do poder executivo do Governo Federal, mas também por governos subnacionais, e no âmbito dos poderes legislativo e judiciário. “É um marco fundamental no combate às ameaças, violência e assassinatos de defensores dos direitos ambientais”, analisa.

Ameaças aos povos indígenas

As mulheres indígenas são as maiores vítimas de violência nas invasões em seus territórios. No dia 26 de abril, uma menina indígena de 12 anos, do povo yanomami, foi estuprada e morta por garimpeiros numa comunidade na região de Waikás, no território que pertence a esta etnia em Roraima. A informação foi divulgada pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, que também é uma das lideranças desse povo. Shirley Krenak, ativista indígena e coordenadora do Instituto Shirley Djukurnã Krenak, comenta como que as mulheres indígenas vem sofrendo nos ataques aos territórios. “Todas as mulheres indígenas que estamos na frente dessa luta sempre vivemos uma situação muito perigosa, sofremos muitas ameaças e violência. Mas mesmo diante de tudo isso que passamos com a tentativa de buscar se fortalecer, ocupar espaços importantes para levar adiante toda a nossa visão territorial”.

Joara Marchezini, coordenadora da Nupef Brasil e especialista em direitos humanos, democracia e acesso à informação analisa que os ministérios no Brasil não estão preparados para facilitar o acesso à informação ambiental para promover a participação da cidadania e proteger os povos indígenas. “O Brasil está atrasado em direitos humanos e ambientais porque, entre outros motivos, tem implementado políticas de retrocesso e não ratificou o Acordo de Escazú. Além disso, nada fez para encaminhar sua ratificação no Congresso. O Acordo de Escazú está parado em uma graveta há pelo menos 3 anos”, comenta.

Cinema indígena como ferramenta de denúncia

Neste contexto de luta por justiça ambiental e pelos direitos humanos, defensores do meio ambiente de origem indígena estão utilizando do cinema para denunciar os crimes ambientais e de direitos humanos em suas comunidades. Os filmes indígenas celebram sua herança e afirmam seus direitos à terra e à expressão cultural, que estão sendo ameaçados.

Segundo Waurá, o cinema indígena, quando contado pelos próprios indígenas, é uma “ferramenta poderosa” por “mostrar para o mundo a realidade do povo indígena e a história indígena além de Fake News”. Waurá comenta que sem a ratificação do Acordo de Escazú, o cinema ajuda a mostrar ao Brasil e ao mundo que os povos indígenas brasileiros estão na luta para denunciar os crimes ambientais e contra a dignidade indígena.

O cinema ajuda a mostrar ao Brasil e ao mundo que os povos indígenas brasileiros estão na luta para denunciar os crimes ambientais e contra a dignidade indígena


Em março deste ano, através de uma parceria com a organização People’s Palace Projects, o cineasta esteve no Festival de Cinema CPH: DOX em Copenhagem, Dinamarca, para apresentar seu filme sobre a caverna sagrada de Kamukuwaka dos povos do Xingu. “O indígena com a câmera na mão conta sua própria história, para as pessoas entenderem a violência que estamos vivendo. Usamos o cinema como uma ferramenta para encontrar aliados à nossa luta para a proteção climática e a nossa existência em tempos de ameaça”.

Próximo governo

Segundo Renato Morgado, mestre em Ciência Ambiental e gerente de programas no Transparência Internacional Brasil, a expectativa é que um eventual novo governo e uma nova composição do Congresso Nacional possam ser mais favoráveis à ratificação do Acordo de Escazú. Para Morgado, a necessária e urgente reconstrução da governança ambiental e climática do país passa pelo fortalecimento dos órgãos, políticas e normas ambientais.

“Isso inclui o estabelecimento de uma governança participativa, transparente que garanta a segurança dos (as) defensores (as) ambientais. Por fim, um novo governo precisa promover a reinserção do Brasil no cenário internacional, retomando o seu papel de país líder nos debates e negociações ambientais. Nesse sentido, a ratificação do Acordo de Escazú será uma oportunidade para o próximo presidente e legislatura sinalizarem, para dentro e fora do país, o seu compromisso com as agendas ambiental e climática”.

*Jornalista com mestrado em estudos de gênero

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