Claudia de Lucca Mano*
Em junho de 2025, a detentora da patente do Mounjaro®, Eli Lilly, anunciou que poderá haver desabastecimento das canetas emagrecedoras no mercado brasileiro. A tirzepatida, substância ativa do medicamento, foi recentemente aprovada para uso no tratamento da obesidade, além da indicação já consagrada para o controle do diabetes tipo 2.
O anúncio reacende um debate urgente: o risco de desabastecimento desses produtos no mercado e os equívocos em torno do papel das farmácias de manipulação nesse contexto.
Em outra decisão relevante, divulgada em abril, a Anvisa determinou que farmácias e drogarias de todo o país passem a exigir a retenção da receita médica para a venda de medicamentos como Ozempic, Mounjaro, Saxenda e Wegovy. Isso significa que não será mais possível a automedicação — prática que, até então, contribuía para o desabastecimento e prejudicava pacientes que possuem indicação médica legítima para seu uso.
Os chamados análogos de GLP-1, como a semaglutida e a tirzepatida, ganharam enorme popularidade como auxiliares no emagrecimento, muitas vezes consumidos fora das indicações oficiais e sem prescrição. O novo controle da Anvisa, que exige receita médica em duas vias, busca justamente conter esse uso indiscriminado. Entretanto, surge outro fator de preocupação: a possível escassez dos medicamentos industrializados — já observada em várias regiões — e a pressão da indústria para concentrar sua oferta em canais exclusivos, restringindo alternativas legítimas.
O risco da desinformação ficou evidente no último dia 26 de maio, após uma reportagem do Jornal Nacional sugerir, de forma equivocada, que farmácias de manipulação estariam envolvidas na comercialização de medicamentos falsificados. A matéria ouviu apenas fontes vinculadas à indústria farmacêutica e deixou no ar a perigosa ideia de que manipular medicamentos seria equivalente a falsificá-los — o que é absolutamente incorreto e não encontra respaldo na legislação brasileira.
A manipulação de medicamentos é uma prática legal, regulamentada e exercida por farmacêuticos habilitados, amparada por normas técnicas rigorosas. Diferente da falsificação — que é crime —, a manipulação tem respaldo jurídico, inclusive frente à existência de patentes. O artigo 43, inciso III, da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96) estabelece que a proteção patentária não se aplica à preparação individualizada de medicamentos sob encomenda, quando feita para atender prescrição médica.
Ou seja, não há qualquer ilegalidade no fato de farmácias de manipulação prepararem formulações contendo semaglutida ou tirzepatida, desde que os insumos utilizados sejam equivalentes aos registrados e a preparação esteja vinculada a uma prescrição médica. A própria Anvisa já afirmou que a manipulação desses ativos, dentro dos parâmetros técnicos adequados, não configura infração sanitária. Além disso, esclarece que a origem dos insumos — seja sintética, biotecnológica ou outra — deve ser avaliada sob o prisma do controle de qualidade, não sendo a via de obtenção do IFA (ingrediente farmacêutico ativo) um critério que, por si só, impeça sua utilização.
A cadeia de controle de qualidade dessas farmácias, vale ressaltar, é extensa e rigorosa. Os princípios ativos são importados com laudos técnicos, passam por reanálises laboratoriais feitas por distribuidores autorizados e são novamente testados pelas farmácias antes da manipulação. Todo o processo segue padrões equivalentes aos da indústria farmacêutica. Aliás, nem farmácias nem a própria indústria realizam testes de lote a lote por parte da Anvisa, cujo papel é fiscalizador, e não de executor de análises laboratoriais de rotina.
Outro ponto fundamental: farmácias de manipulação, em geral, não comercializam as chamadas “canetas” injetoras, como frequentemente se vê nas redes sociais. Seus medicamentos são entregues em frascos-ampola, para aplicação com seringa, sempre mediante prescrição. A venda de canetas falsificadas nas redes sociais é, sim, um crime grave — mas sua origem não está nas farmácias legalizadas. Colocar essas instituições no mesmo patamar da clandestinidade é, além de injusto, profundamente irresponsável.
A questão de fundo também é econômica. Com custos significativamente menores, os medicamentos manipulados tornam-se uma alternativa viável para pacientes que não conseguem arcar com os preços dos produtos industrializados. Em um país com desigualdade social tão marcada, restringir esse acesso com base em argumentos falaciosos só tende a agravar o cenário de exclusão terapêutica.
O desabastecimento iminente de medicamentos industrializados reforça a compreensão de que não é proibido manipular substâncias protegidas por patente. A própria Lei de Propriedade Industrial prevê essa exceção. Quando há conflito entre o direito à vida, à saúde, e a proteção da propriedade intelectual, a prioridade deve ser, sempre, o bem-estar humano.
A decisão da Anvisa pode, sim, ser eficaz para coibir o uso inadequado dos emagrecedores. Mas, para que não se transforme em mais um obstáculo à saúde da população, precisa vir acompanhada de uma compreensão inequívoca: farmácias de manipulação não são vilãs. São parte da solução.
*Claudia de Lucca Mano é advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos