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Do quarto de despejo ao Torto Arado: que Estética é esta?

Publicado em 05/09/2025 às 06:00.

Prof. Dr. Seu João Xavier*

Eu não gosto de cará. Para mim, é uma enganação da batata inglesa, que considero mais saborosa, versátil: pode ser frita, cozida, assada, em purê, rústica, em palito, no espeto… infinitas possibilidades. Há quem concorde, há quem prefira o cará. E há quem não queira sequer discutir o assunto. Mas por que um professor, linguista e sociólogo, doutor em linguística, está escrevendo sobre cará e batata?

Na verdade, isso não é sobre culinária. É sobre gosto, preconceito e poder. Sobre o que se aceita como arte, cultura, literatura. E, principalmente, sobre quem decide isso.

No dia 30 de agosto, a professora Aurora Bernardini escreveu na *Ilustríssima* da Folha de S. Paulo que Itamar Vieira Jr., embora trate de temas interessantes, “não faz literatura”. Nada novo. Em 2017, na Academia Carioca de Letras, o professor Ivan Proença disse o mesmo sobre Carolina Maria de Jesus: que seu *Quarto de despejo* “não é literatura”, apenas relato cru, coisa de quem “não tinha condições de existir por completo”. Sim, ele disse isso num microfone, para todos ouvirem. E completou com o que já se dizia: “Se essa mulher escreve, qualquer um pode escrever”.

Pois essa mulher escreveu, foi traduzida em mais de 18 idiomas, gerou teses e é lida mundialmente. Mas ainda hoje, autores negros precisam provar que sua arte é arte. E sua dor, dor. O *Diário de Anne Frank* jamais sofreu esse tipo de questionamento. O Holocausto é reconhecido como crime contra a humanidade, com museus, homenagens, memória preservada. Já o genocídio negro no Brasil, que atravessou séculos, segue sendo ignorado. Em 2023, 77% dos homicídios vitimaram pessoas negras. Uma pessoa negra morre assassinada a cada 12 minutos. E isso ainda precisa ser justificado como pauta.

Abdias Nascimento já chamava isso de genocídio disfarçado. Sueli Carneiro aponta o racismo como engrenagem que distribui a morte. Mbembe fala em necropolítica: quem decide quem vive e quem morre.

Se essas mortes tivessem o mesmo peso simbólico que outras tragédias reconhecidas, talvez a luta fosse por memória — não por sobrevivência. Porque muitas vezes, o que produzimos não é visto como literatura, arte ou saber. É folclore, é “menor”.

Machado de Assis enfrentou isso. Luiz Gama também. Autodidata, libertou centenas de escravizados com sua pena, mas sua obra foi silenciada. Maria Firmina dos Reis, primeira romancista negra do Brasil, só foi resgatada mais de um século depois. Quando me formei em Letras, seu nome sequer aparecia no currículo. Ainda hoje, em muitos cursos, não aparece.

O mesmo se repete na música, nas artes visuais, na filosofia. Tudo o que é feito por mãos pretas precisa ser legitimado “apesar de”. Só vale quando é embranquecido ou redescoberto pela crítica branca.
Talvez os Bernardinis e Proenças estejam certos em uma coisa: o que esses autores escrevem não é *apenas* literatura. É mais. É denúncia, existência, sobrevivência. É aquilo que a crítica acadêmica, com seu olhar eurocentrado, não consegue — ou não quer — alcançar.

Como escrevo em meu livro *Racismo Estético*: a colonização moldou até o que achamos belo. Romper com isso é libertar a mente, descolonizar o olhar. Enquanto o racismo persistir, a democracia será uma ilusão. A luta não é por luxo. É por vida.

Eu já disse: não gosto de cará. Mas seria tolice dizer que não é comida. É nutritivo, tem valor. Só não me agrada. E, no fim das contas, como já disseram... **ao vencedor, as batatas.** Mas isto aqui — definitivamente — **não é sobre legumes.**

* Professor efetivo do Departamento de Linguagens e Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Linguista e Sociólogo – Mestre em Linguística Aplicada (UFMG) e Doutor em Estudos de Linguagens (Cefet-MG)

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