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Justiça não é brinquedo: é preciso levar a solução de conflitos a sério (e ter responsabilidade)

Publicado em 16/05/2025 às 06:00.

Suzana Cremasco*

A recente viralização de um vídeo em que uma advogada relata ter sido procurada para ajuizar um pedido de guarda de um “bebê reborn” — boneca de silicone hiper-realista — não é apenas mais uma anedota do chamado “entretenimento jurídico”. É um sintoma alarmante da corrosão do Direito e da jurisdição enquanto espaços de resolução séria e legítima de conflitos. 

Segundo a própria narrativa, a profissional recusou a demanda, como não poderia deixar de ser. E decidiu compartilhá-la publicamente, indicando o limite do absurdo que lhe foi apresentado. A reação foi previsível: curiosidade, memes, piadas — e pouquíssima crítica. 

É preciso dizer com todas as letras: o Direito não é lugar de fantasia. O Poder Judiciário não é palco de teatro. E a advocacia não pode ser instrumento de promoção da irracionalidade (e da irresponsabilidade) jurídica alheia. Em um país com quase 80 milhões de processos em curso e um tempo médio de 7 anos para um desfecho definitivo, a mera cogitação de demandas desse tipo exige uma resposta à altura — firme, técnica e ética. 

O mais grave não está na figura excêntrica que quer “litigar” por uma boneca. Está na forma como a sociedade (e parte da comunidade jurídica) reage: rindo, curtindo, comentando, engajando, tratando como curiosidade (ou loucura) inofensiva. Não é. Ao tornar públicas essas abordagens sem o devido contexto crítico, reforça-se a falsa ideia de que qualquer desejo pode se transformar em direito — e que o advogado seria mero operador da vontade do cliente. Não é assim. Advogar é, antes de tudo, filtrar, orientar, recusar. É responsabilidade, e não espetáculo. 

Há, inclusive, um ponto adicional que parece ter surgido nesse caso e que revela outra distorção jurídica relevante: a disputa sobre a titularidade da conta da boneca nas redes sociais. Neste aspecto, convém separar as esferas com precisão. A conta em si — com número de seguidores, monetização, contratos de publicidade e conteúdo autoral — pode ser, sim, considerada um ativo digital. E como tal, deve ser tratado como bem partilhável, sujeito às regras da comunhão ou dissolução da sociedade conjugal, empresarial ou afetiva eventualmente existente entre as partes. Mas isso nada tem a ver com afeto projetado sobre a boneca. É uma questão de patrimônio, não de parentalidade. 

Confundir essas instâncias — emoção, identidade, posse, patrimônio e tutela jurídica — é não apenas conceitualmente equivocado. É um risco institucional. 

A Justiça não é um lugar de acolhimento indiscriminado de toda dor subjetiva. É um espaço técnico para a resolução de litígios que envolvam interesses juridicamente tuteláveis. E isso exige discernimento. Nem toda dor vira direito. Nem todo conflito merece ação. Às vezes, é o afeto que precisa de cuidado — não o processo. 

Enquanto tratarmos o Judiciário como balcão de desejos ou palco de performances emocionais, não haverá celeridade, nem eficiência, nem dignidade. A solução de disputas — seja por mediação, negociação ou judicialização — é pilar da democracia. Exige preparo, sobriedade, responsabilidade. Porque quando o Direito vira meme, a Justiça vira piada — e o pacto civilizatório que a sustenta começa a ruir. E, ao final, todos nós perdemos.

*Doutora em Direito pela UFMG, professora de Processo Civil do Ibmec, advogada especialista em solução de disputas estratégicas

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