Qual infância conhecemos?

Publicado em 13/09/2022 às 06:00.

Tharso Peixoto Souza*

É sabido, pelo que lemos dos historiadores e pesquisadores a respeito da concepção de infância nas muitas culturas, que nem sempre a criança age do mesmo modo. Hoje a criança aparece em dois extremos inconciliáveis. Encontramos, por um lado, a criança atrelada ao significante “nada”, quando encarna o descaso da família e do Estado, vivendo alheia a quaisquer critérios de proteção à vida e em completo abandono pelas ruas das cidades, perambulando na borda do real do desamparo, sem sonhos ou fantasias. Sobre esta se fala muito, ainda que nem todas as ações se efetivem. Na ponta oposta, encontramos a criança ligada ao significante “tudo”, sendo aquela que ocupa um lugar central na família, que se esmera em negar-lhe qualquer frustração, nada lhe pode faltar. O excesso oferecido a essa criança se presentifica na omissão da morte e das mazelas do mundo, na aquisição de brinquedos em série e no assujeitamento dos pais a seus mandos. Certamente que o leitor já presenciou a cena da criança se contorcendo no chão do supermercado, com exigências aos gritos perante pais perplexos, aparentemente sem saberem como proceder.

Pensamos nas mudanças de paradigmas que esta questão enfrentou, desde o ingresso precoce das crianças ao trabalho formal e pesado na Idade Média, por exemplo, ou à pouca restrição que elas tinham quanto à vida adulta em séculos anteriores ao nosso, ou mesmo na formatação das crianças trajadas ao estilo de um “adulto mirim”, como vemos admirados nos quadros dos nossos museus. Num breve percurso no tempo, podemos ver que o modo de tratarmos a infância sempre nos trouxe questões, sendo mais apropriado nos referirmos às infâncias, termo no plural, uma vez que a história nos mostra, até hoje, o profundo e importante grau de diferenciação que o tema envolve. Nem toda criança experimenta ou vai experimentar a infância do mesmo modo.

Foi Sigmund Freud, com sua psicanálise, que deu destaque a esta experiência que todas as crianças têm com suas próprias infâncias, destacando que são vividas de forma singular. Para a psicanálise, a criança é um ser de desejo, ativa, movida pela dinâmica pulsional, capaz de fazer escolhas e, principalmente, inventiva quanto à sua realidade. Tudo isso nos diz que toda criança é capaz de dar sua interpretação ao mundo em sua volta, a partir daquilo que lhe falta e, também, daquilo que é recebido como excesso. Disso fará sua invenção funcionar, ou seja, dará sua resposta. Por isso, nosso trabalho como pais e mães não é impedir que os problemas do mundo as alcance, mas fornecer meios para que as crianças – todas elas – consigam construir uma infância possível – nem escassez, nem excesso –, mas uma experiência que lhe permita (sempre) desejar e inventar... até quando se tornarem adultas.

*Psicanalista, mestre e doutorando em Psicologia, especialista em clínica psicanalítica com crianças e adolescentes, docente do curso de graduação em Psicologia da Faculdade Promove, Belo Horizonte

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