Quando o Merthiolate ardia…

Publicado em 09/05/2024 às 06:00.

Ênio César de Moraes*

— Vai arder, mãe!

— Vai arder um pouquinho, mas eu vou soprar e vai passar!

Quem reconhece esse rápido e tortuoso diálogo, quando a mãe — geralmente era ela! — se aproximava com o vidro de Merthiolate, certamente faz parte da denominada Geração X. Uma geração que parecia flertar o tempo todo com o perigo e o medo. Tanto que, no repertório da paternidade da época e hoje na memória dos filhos, supostamente sem traumas e ressentimentos, ecoam as admoestações: “Em casa a gente conversa!”, “Se eu for chamada na escola...”, “Se eu for aí...”, “Engole o choro!”, entre tantas outras.

Essa atmosfera de tensão, com frequência, punha-nos em estado de alerta, dada a constante responsabilização pelas nossas escolhas e, especialmente, pelos nossos atos. E, obviamente, nem todos respondiam da mesma forma, considerando as idiossincrasias de cada ser. É verdade que, muitas vezes, não deixávamos de fazer certas estripulias, mas tínhamos certa consciência do risco assumido e das consequências possíveis. Não, esse quadro não é privilégio da nossa geração.

Nossos bisavós e avós viveram tempos mais tensos e experimentaram relações ainda mais formais, hierárquicas e pouco abertas ao diálogo. É o que se vê nestes versos de Drummond, constantes do livro A rosa do povo, publicado em 1945: “E fomos educados para o medo. / Cheiramos flores de medo. / Vestimos panos e medo. / De medo, vermelhos rios vadeamos”.

O fato é que o mesmo medo que se faz ferramenta útil e poderosa, por nos desafiar e acionar mecanismo de atenção e defesa, também se faz perigoso, porque pode nos paralisar. E não é fácil achar o ponto de equilíbrio entre essas duas potencialidades. Mas viver, como ensinar, é isto: quantas vezes precisamos “agir na urgência” e “decidir na incerteza”?! Felizmente, em se tratando da educação familiar, hoje o cenário, de modo geral, é bem diferente. Por diversos fatores: inter-relacionais, legais e circunstanciais.

Temos pais mais próximos dos filhos; proteções legais à criança e ao adolescente que impedem, por exemplo, os castigos físicos e constrangimentos que outrora eram comuns; maior acesso à informação, avanços tecnológicos e científicos; mudanças de paradigmas socioculturais; entre tantos outros fatores que modificam as dinâmicas familiares. Como efeito colateral, porém, temos a superproteção por parte de pais que — na melhor das intenções — pensam poder blindar os filhos de frustrações, dores e sofrimentos.

Quando o Merthiolate ardia, os pais experimentavam, em situações banais e corriqueiras, a impotência para evitar a dor do filho e, diante disso, buscavam amenizar- lhe o sofrimento com foco no benefício do medicamento: “é para o seu bem”. Às vezes, doía mais neles do que em nós! Acalme-se, caro leitor! Eu jamais defenderia que o famigerado remédio, a despeito dos avanços científicos, conservasse seu ardor — seria uma desinteligência, além de uma postura um tanto masoquista! Trata-se apenas de uma analogia provocativa de reflexões acerca das relações de causa e efeito, sem o viés determinista, que se aplicam a, praticamente, todos os contextos da nossa vida. É simples: a dor física será maior para um sedentário que inicia os exercícios do que para quem já está habituado a fazê-los.

E, se educo meu filho de forma superprotetora, como envolvê-lo em uma redoma, não o preparo para o mundo real, no qual haverá, inevitavelmente, perdas, frustrações, dores. Em suma, é importante fazer o que eu chamaria de “uso pedagógico do medo”. E que não se confunda com terrorismo, mas que configure uma apologia à coragem. É necessário evidenciar que os perigos existem e que precisam ser, na medida do possível, consciente e inteligentemente, enfrentados.

Nas palavras atribuídas ao poeta Fernando Pessoa, “A coragem que vence o medo tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma”.

* Professor e Coordenador do Ensino Médio no Colégio Presbiteriano Mackenzie de Brasília

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