C-O-N-S-C-I-Ê-N-C-I-A. Curioso como uma palavra com suas onze letras consegue carregar sozinha um mundo de responsabilidades éticas, princípios sociais e valores pessoais. “Que falta de consciência!” costuma ser a frase de denúncia para atitudes reprováveis, geralmente dita por quem a exclama. Pode ser dirigida às outras pessoas, ao meio ambiente ou ao banho demorado que era interrompido pela batida na porta avisando da conta de água, da conta de luz ou do atraso que eu estava causando na fila dos meus irmãos, que também precisavam tomar banho.
Em ocasiões em que a pessoa parece não estar pensando claramente, ou ignorando fatores óbvios, não é difícil ouvirmos um “Ponha a mão na consciência”. Pode vir até acompanhado de um “pelo amor de Deus”, na esperança de que o apelo ao divino surta algum efeito. Porque, como já sabemos, “tem gente que não tem consciência”. Aos que têm, às vezes sobra “dor na consciência” quando suas atitudes não refletem o que gostariam de ter feito. Por egoísmo, má-fé, esquecimento — ou seja lá qual for o motivo que junta duas abstrações tão complexas quanto dor e consciência, que pode estar tranquila, leve ou pesada.
Esse pequeno exercício reflexivo mostra que entendemos muito bem as implicações de ter ciência sobre a nossa própria consciência. Claro! Ninguém quer ficar inconsciente, por motivo algum, e muito menos agir impulsivamente só à base do inconsciente, como se estivéssemos numa eterna passagem ao ato.
Consciência Negra sempre me lembra minha avó, Dona Carolina Maria da Paixão Xavier (desculpe o parênteses, mas isso não é só um nome: é um poema). Vovó dizia: “preste atenção no que cê tá fazendo, menino”. E acho que o Brasil inteiro precisava ouvir essa frase de novo, porque, em pleno 2025, a consciência parece ter tirado licença não remunerada.
No início do ano, o universitário negro Igor Melo, de 32 anos, voltava do trabalho quando foi baleado pelas costas por um PM da reserva que o “confundiu” com um ladrão de celular. Igor perdeu um rim. Lutou pela vida e, ainda assim, foi colocado sob custódia. A família ameaçada, impedida até de visitá-lo. Meses depois, a influencer Antônia Fontenelle decidiu transformar racismo e transfobia em conteúdo, chamando a deputada Erika Hilton de “preta do cabelo duro”, como se a cor da pele fosse argumento político.
Logo depois, como se o roteiro do país fizesse questão de reforçar quem pode falar e quem deve ser punido por falar, veio a perseguição contra o deputado estadual Renato Freitas. Negro, periférico e eleito pelo voto popular, Renato já tinha vencido duas tentativas de cassação na Câmara de Curitiba e retomado seu mandato pela via judicial. Pois bem: mal assumiu a Assembleia do Paraná e já tentaram tirá-lo de novo. O motivo? Denunciar a violência policial que recai, como sempre, sobre corpos negros.
No Brasil, quando um homem negro aponta o óbvio, o sistema não debate: ele reage. E reage sempre na tentativa de calar. Na quarta-feira (19), inclusive, Renato precisou distribuir uns socos e chutes para tentar se defender de um agressor na rua.
Ainda neste ano, veio a maior operação policial da história do Rio: 121 mortos, dos quais 117 eram pessoas negras, classificadas como “suspeitas”. Corpos arrastados da mata à praça pelos próprios moradores para que, ao menos, tivessem nome. Tudo isso no mesmo país que acaba de tornar o Dia da Consciência Negra feriado, e que, ainda assim, insiste diariamente em demonstrar quem tem sua humanidade reconhecida e quem continua precisando justificá-la. Escandalosamente, o governador Cláudio Castro considerou esses números um sucesso.
Todo ano aparece alguém dizendo que não deveríamos ter Dia da Consciência Negra porque “todo dia é dia de todo mundo”. Uai… todo dia também é dia de escovar os dentes, passar fio dental e tomar banho. Mas, se desde criança ninguém te orientar e cobrar, vira caos — e um caos que, convenhamos, muita gente anda tão acostumada a viver no próprio bafo podre da ignorância.
Este feriado escancara a maior verdade sobre o Brasil: consciência, quando envolve branquitude, quase nunca chega; e, quando chega atrasada, vem toda esburacada.
Consciência negra não é ter consciência de que pessoas negras existem.
Consciência negra não é o dia de não ser racista.
Consciência negra é memória, luta, herança, responsabilidade, e ações concretas que possam equilibrar todas essas desigualdades socioeconômicas e violências. É lembrar que o racismo estrutura instituições e práticas cotidianas, e que precisamos combatê-lo para que pessoas negras tenham acesso pleno à sua cidadania política, cultural, econômica e étnico-racial.
Nós, que acreditamos na liberdade, não podemos descansar até que ela se torne realidade. Não há democracia sem combate ao racismo e não há combate ao racismo sem enfrentar as desigualdades que o estruturam e o alimentam.