E quem disse que injúria racial não é racismo?

Publicado em 19/04/2022 às 06:00.

Sinceramente, eu não aceito a compreensão jurídica de que chutar, bater e chamar uma pessoa de  “negra esquisita” seja crime de injúria racial, e não de racismo. Destaco, ainda, que não estou pontuando um caso hipotético. A situação aconteceu em um edifício de uma área nobre de São Paulo. Os vídeos das câmeras de segurança, publicados recentemente, não me deixam mentir.

Para a lei, o crime de racismo se materializa se determinada prática discriminatória for direcionada a um determinado grupo. Por exemplo, se uma escola se recusar a aceitar matrículas de estudantes negros, ela estaria cometendo um crime de racismo. Já a injúria racial ocorre quando o agressor utiliza palavras depreciativas referentes à raça ou à cor com a intenção de ofender a honra da vítima. À primeira vista, até parece uma explicação coerente, justificável. Contudo, estudos, pesquisas e análises sobre como o racismo estrutural se manifesta na sociedade levam-nos a questionar, senão a distinção dos conceitos, a imprescritibilidade, a possibilidade de fiança e a punição mais branda nos casos de injúria racial.

A Constituição Federal de 1988 prevê em artigo 5º que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”. A lei que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor é a lei nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989, conhecida como Lei Caó, por ter sido proposta pelo ex-deputado federal baiano Carlos Alberto Caó de Oliveira. Graças a esse político, advogado, jornalista e ativista do movimento negro, não foram prolongados  – por mais tempo ainda – o atraso e o descaso para criminalizar o racismo no Brasil.

Apesar disso, do papel para a prática, há uma distância enorme.

Só para se ter uma ideia, segundo dados mais recentes do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, foram contabilizados, em 2020, 10.291 casos de injúria racial e apenas 2.364 ocorrências de racismo. Em Minas Gerais, foram registrados 337 casos de injúria racial e 154 de racismo no mesmo período. Os dados são provenientes das secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais.

Esse cenário não representa, nem de longe, a realidade enfrentada pela população negra. E por trás desses números, há a subnotificação e, até mesmo, a omissão da polícia e da justiça. Chama ainda a atenção a disparidade entre os casos de racismo e injúria racial. Não é, no mínimo, estranho que os índices de crimes de racismo sejam bem menores que os índices de injúria racial? Na verdade, para quem compreende o racismo enquanto sistema, não é estranho. É tão somente o racismo estrutural se manifestando nas instituições jurídicas e de segurança pública.

Os números podem ser ainda mais reveladores. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há no Brasil aproximadamente 134 mil processos em tramitação sobre crimes raciais. Porém, apenas 1,3% deles são de racismo. Mas como lutar contra a impunidade diante de um judiciário majoritariamente branco? Como buscar soluções se quem decide não compreende – e muitas vezes nem quer compreender – o processo histórico de escravização do negro e as graves e cruéis consequências do racismo?

Apesar da ausência de respostas, o Supremo Tribunal Federal (STF) me fez criar expectativas. O  órgão de cúpula do Poder Judiciário equiparou, no ano passado, a injúria racial ao racismo. Isso significa que os tribunais poderão entender que a injúria racial pode ser julgada independentemente do tempo e que os agressores não têm mais direito à fiança. Ilusão ou esperança?

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