O racismo fala

Publicado em 24/05/2022 às 06:00.

A língua enquanto produto social, já que o idioma só existe na coletividade, proporciona a relação do indivíduo com culturas, ideologias e identidades, ou seja, a língua opera como um instrumento de interação social. Esse aspecto da língua possibilita compreendermos outra característica: o idioma não é imutável. No caso da nossa língua portuguesa, são perceptíveis diversas mudanças que se processaram através de fenômenos históricos e sociais. E se a língua não é intacta, seus falantes não podem permanecer omissos diante da perversidade de palavras e expressões racistas naturalizadas.

Que atire o primeiro dicionário quem nunca disse “denegrir”, “cabelo ruim”, “criado-mudo”, “serviço de preto”, “doméstica”, “lista negra”, “a coisa tá preta” ou “amanhã é dia de branco”. Há quem diga que essas e outras expressões são ditas “apenas” por força do hábito. Contudo, ingenuidade e sutilezas têm o poder de reforçar estereótipos e colaborar para a manutenção do racismo estrutural. Para além disso, palavras e expressões racistas, ainda que ditas sem intenção ofensiva, podem, sim, insultar o interlocutor.

A verdade é que a origem de manifestações racistas por meio da língua remete ao período de escravização dos negros e manter a reprodução de palavras e frases racistas reforça no inconsciente coletivo a ideia discriminatória de que o negro não merece respeito. Entre os diversos exemplos possíveis, citarei um caso que me incomoda bastante. Não foram raras as vezes que, ao receber um elogio, ouvi pelo menos uma destas expressões: “Que negra bonita!”, “Você tem os traços finos” ou “Você tem uma beleza exótica”.

Pare para pensar. Quando uma mulher branca é elogiada, por acaso, alguém diz “Que mulher branca bonita!”? Não! Ninguém diz isso. E sabe por quê? Porque está impregnado no inconsciente coletivo que a mulher negra não é bonita. Nossa sociedade não foi estruturada para considerar bonitas as características fenotípicas da população negra. Nariz grande e achatado, cabelo crespo, entre outras particularidades, não são apreciadas por uma sociedade que sempre valorizou o padrão europeu. Nessa perspectiva, uma mulher negra, por exemplo, só pode ser considerada bonita se tiver os traços finos.

Nesse contexto, ainda que não seja “intencional”, uma pessoa que se vale dessas e de outras expressões preconceituosas está se revelando, ou melhor, está expondo o racismo interiorizado em si. E dizer que não tinha a intenção não torna essa pessoa menos racista. O que faz dessa pessoa menos racista é o reconhecimento de que é impossível não ser racista estando numa sociedade que foi formada a partir do sistema escravocrata.

Reconhecer exige busca, e a internet está repleta de estudos, manuais, guias e dicionários antirracistas que podem colaborar para que o vocabulário seja aprimorado. Basta reconhecer, querer e agir. Falando nisso, no dito popular, é consenso que as ações dizem mais que as palavras. E eu concordo. Até porque, na luta contra o racismo, saber utilizar as palavras também é uma grande atitude.

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