Simone DemolinariPsicanalista com Mestrado e dissertação em Anomalias Comportamentais, apresentadora na 102,9 e 98 FM

É preciso perder para valorizar?

Publicado em 18/04/2024 às 06:00.

Uma frase atribuída a Santo Agostinho diz: “Felicidade é continuar desejando o que se possui”. Já o filosofo Arthur Schopenhauer afirma: “A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”. Seja santo ou filósofo, há pessoas que parecem desejar algo ou alguém só no momento em que perdem o objeto de desejo. Mas será que esse é um desejo verdadeiro?

Essa é uma questão muito indagada em consultório, em situações onde um casamento vai mal e um dos parceiros se empenha na tentativa de resgatar a relação, enquanto o outro parece não se importar muito. Chega um momento em que aquele que se esforça decide se separar e eis que nesse momento nasce uma valorização repentina recheada de promessas. A intensidade do que é prometido é tanta que em um dia a pessoa verbaliza tudo que a outra queria ouvir por anos. 

Para uma reflexão mais profunda precisamos refletir esse comportamento considerando três tipos de pessoas: 

As do primeiro grupo são mais frias, tratam o par afetivo de forma pouco afetuosa e mais distante. Passam anos ouvindo a queixa de que precisam demonstrar mais amor, mas não se importam muito em mudar. Gostam mesmo de receber carinho e atenção, mas sem a preocupação em retribuir. O curioso é que estes valorizam, sim, a postura do parceiro, mas não demonstram. Aliás, fazem o contrário, reclamam mais, pois agindo assim o outro continua se esforçando para agradar. A estratégia, apesar de perversa, costuma funcionar, e a relação vive nesse desalinho, um dando mais e ficando sem receber como gostaria, enquanto o outro recebe mais do que dá e ainda reclama. Até que um dia aquele que está cansado de não ser valorizado vai embora e, então, num passe de mágica, o outro passa a demonstrar valor. Chora, pede para voltar, faz juras de amor e coisas que nunca fez. A verdade é que estes sempre valorizaram, porém pela sua natureza mais egoísta são voltados para si. Quando percebem que realmente irão perder, ficam desesperados e tentam fazer num curto espaço de tempo o que não fizeram numa vida inteira. Mas isso não passa de promessas, fruto da tristeza em perder toda a mordomia que recebem. Esses de fato valorizam e não querem perder o par afetivo de jeito nenhum, mas não estão dispostos a ter uma relação igualitária. Querem mesmo continuar recebendo sem ter que retribuir. 

O segundo grupo é o de pessoas que, como o primeiro, não se importam muito com a relação e não demonstram valorização dos seus pares, mas no ato da ruptura passam a demonstrar. A diferença é que aqui eles não suportam sentir a dor da rejeição e tentam resgatar o outro para amenizar seu sofrimento, mas, no fundo, já não valorizavam a relação e continuam não valorizando. A mudança repentina é fruto da dor de terem sido largados. Pura vaidade. 

O terceiro grupo é o de pessoas mais desligadas e desconectadas do carinho e atenção, mas isso é fruto de um comportamento relapso, pois valorizam e muito seus pares. Apesar de gostarem da relação, não dão a merecida dedicação que o outro gostaria. Estes, quando se deparam com a dor da ruptura, levam um susto tão grande que acabam por se empenhar verdadeiramente na mudança –fazem mais do que prometem, buscam não cometer os mesmos erros, passam a valorizar através de atitudes e estão verdadeiramente dispostos a mudar pois entendem que essa evolução, é antes de tudo, uma coisa boa para si. Estes pertencem ao grupo dos que “acordam” após o susto. Ja os dois primeiros grupos não estão dormindo, por isso não existe esse despertar de consciência. 

Tudo isso nos convida a estarmos atentos antes de nos rendermos às promessas. Mudar não é um processo fácil pois requer autocrítica honesta, reconhecimento do erro, além da privação de um interesse próprio em prol de um bem comum. Coisa a que nem todos estão dispostos. 

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