‘E aí? Você é quem defende os bandidos?’

Publicado em 06/04/2024 às 06:00.

Jânio Oliveira Donato*

Com frequência o advogado criminalista lida com o estigma de ser visto como aquele profissional que presta um verdadeiro desserviço ao Estado. Para muitos, não passa de um mentiroso, que ganha a vida enganando as autoridades para livrar seus clientes da prisão. Afinal, defesa de “bandido” – como é comumente chamado o que pratica qualquer infração penal – só pode ser papel de gente sem ética e sem apreço à justiça.  

Certa vez presenciei uma pessoa, dessas mais deselegantes, ofendendo um advogado com impropérios inomináveis, algo terrível, mas que foi visto como um ato de coragem pelos colegas do acusador. Por sinal, logo se aproveitaram do fato e do registro (“quem não filmaria o barraco”?) para compartilhar o vídeo em um site criado pela turma. Assim conseguiriam mais views e dariam um belo impulso à página, até então visitada apenas por interessados em fotos e vídeos pornográficos “de novinhas”. Já era a hora de começarem a buscar outras formas de monetização do site com “conteúdos” diferentes. A exposição da vida alheia, com fofocas levianas, parecia uma boa alternativa, mas logo foi substituída por ideias mais sedutoras, como promessas de ganhos fáceis em pirâmides financeiras, oferta de cursos on line (sem que ninguém tivesse qualificação para tanto) e de pacotes de viagem, sem garantias mínimas de cumprimento do contrato. Mais importante era ter lucro. 

No entanto, os projetos nunca saíam do papel porque após algumas horas de bate-papo, de bebidas e tragadas (às vezes, de substâncias proscritas), alguém sempre lembrava de algum compromisso, como o encontro marcado com a “novinha” de 13 anos (“aquela do vídeo compartilhado no grupo”) ou a prova da faculdade que exigiria horas de estudo. Sobre as provas, o que trazia alívio era saber que todos os livros, que seriam utilizados para as “colas”, já tinham sido “baixados” pelo “nerd” da turma. 

O “nerd”, por sinal, era realmente um grande amigo. Além de livros, também “baixava” músicas e filmes pra que ninguém precisasse pagar por nada na internet. Ele tinha uma empresa, mas fazia renda extra com venda de bugigangas contrabandeadas e, às vezes, de aves silvestres capturadas na roça do avô. Era o mais bem sucedido e esperto do grupo. Até dava dicas de como gerir o negócio sem ter que declarar nada ao Fisco, nem ter de cumprir à risca obrigações trabalhistas. 

A turma era boa. E o melhor: todos torciam para o mesmo time e iam ao estádio juntos! Para não perder os jogos, não mediam esforços. A paixão era tanta que às vezes até brigavam com as mulheres e com os filhos e passavam por cima de tudo para verem o time do coração jogar (ainda que, para isso, precisassem “voar” pelas ruas sem observar as placas de sinalização). Certa vez até derrubaram da bicicleta um idoso e não prestaram socorro porque já estavam atrasados para a partida (“quem mandou o velho ser tão desatento?”).

Hora do jogo. Alguém compra a cerva. O troco veio errado (“azar do otário do vendedor”). Partida difícil (“juiz ladrão, um filho da...”). Gol do time adversário. Perda do título. Mais xingamentos. Provocações da torcida rival. Briga na saída do estádio. Mas a turma é unida. Bateram tanto num torcedor que o deixaram desacordado (“ninguém viu, deixa o trouxa lá...”). Volta pra casa. Alguns se queixam que ainda vão ter que aguentar a mulher reclamando do horário (“aquela folgada não me entende... ficou pior depois do maldito aborto que insisti que ela fizesse...”). Outros dizem que o jeito é ver um pouco de TV (“aquela comprada no centro pelo preço de um controle”) até serem vencidos pelo sono. 

Nada de interessante nos canais (“quem sabe uma olhada no site da turma pra ver se tem vídeos novos?”). Hoje a página teve um bom número de acessos (“o pessoal logo vai aprender a fazer dinheiro com isso”). Aquele vídeo dos xingamentos ao advogado realmente deu muitos likes (“por sinal, merecidos... o cara ganha a vida defendendo bandidos, tem mais que se ferrar...”).  

* Advogado criminalista. Mestre em Direito Processual e Especialista em Ciências Penais. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades Kennedy e Promove de Minas Gerais

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