Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A cartela do bingo como um ato de resistência e afeto

Publicado em 08/08/2025 às 06:00.

Dona Abigail tem nome de reza antiga, daqueles que a gente escuta e imagina uma senhora de vestido florido, cabelo preso com rede, andar devagar e um porta-retratos na estante, ou na parede, com uma foto em preto e branco. Talvez um bolo no forno. Talvez uma saudade. O nome, de origem hebraica, significa “a alegria do pai” ou “fonte de alegria”.

Mas, por muito tempo, Dona Abigail foi apenas um nome esquecido. Esquecido pelos próprios filhos, que, ironicamente, não esqueceram da televisão, da geladeira, nem da aposentadoria da mãe quando saíram de casa e levaram tudo. Os objetos, o dinheiro, o afeto. Deixaram apenas o corpo de Dona Abigail, já frágil, sozinho no bairro onde morava.

Foram os vizinhos que notaram. Notaram o silêncio, o lixo que não era colocado para fora, a ausência daquela senhora nos comércios da vizinhança. Perceberam que ninguém a visitava, que ela já não ia mais à feira, nem à calçada. Levaram-na ao Cras da região, num gesto necessário, urgente e decisivo. E foi dali que Dona Abigail foi encaminhada para uma instituição de longa permanência para idosos.

Ela chegou quase sem fala. Não fazia perguntas, não pedia nada. A autonomia já estava comprometida, o brilho dos olhos já não havia mais. Parecia alguém que havia esquecido como é estar viva, ou talvez, alguém que se acostumou a viver no modo automático, comendo quando dão, dormindo quando o corpo não aguenta mais.

A instituição fez o que se espera: acolheu, cuidou, tratou, enxergou. Cuidados médicos, alimentação, higiene, medicação, tudo no tempo certo. Mas foi além: ofereceu presença. E é esse tipo de cuidado que não se mede em números. Não há relatório de ESG ou planilha de Excel que deem conta do valor desta acolhida.

Ao longo dos meses, a aposentadoria que os filhos usurparam foi recuperada. Com ação judicial, procurações canceladas, documentos em ordem. Pela primeira vez em muito tempo, Dona Abigail teve sua renda para si. Não era muito, é verdade, mas talvez o maior valor tenha sido simbólico. Ela pouco falava e acreditamos que as dores sentidas em seu coração tenham sido transcritas e manifestadas na instabilidade da sua saúde.

Lentamente, ela começou a se transformar. Aquelas mãos, antes trêmulas, voltaram a mexer peças de dominó. Os olhos, já turvos de tanto tempo sem ver gente, começaram a encontrar sentido nas manhãs. A fala, que vinha aos poucos, foi ganhando frases mais completas.

Naquele dia, como em outros domingos, nossos voluntários chegaram para um bingo, com alegria e prêmios simples, mas que animam e entretêm a todas. Canetas coloridas, biscoitos caseiros, bombons, com autorização da nutricionista, logicamente. Montamos as mesas com cuidado e cada idoso recebeu uma cartela. Alguns não sabiam mais acompanhar os números e precisavam de ajuda. Mas estavam lá: presentes e animados.

Dona Abigail, ao contrário de tantas outras vezes, não precisou de tanta ajuda. Pegou a caneta, olhou com calma para os números. E marcou um, depois outro. O risco era trêmulo, incompleto, mas era ela quem o estava fazendo e isso é de uma importância imensa. Discreta, focada, sem fazer uso da voz, mas com um sorriso pequeno que não se via há tempos.

Toda vez que levamos bingo para as instituições de longa permanência para idosos, damos um jeito, secretamente, de que todos ganhem um presente. Até direcionamos os números para que isso aconteça, sem que ninguém perceba.

Quando tudo terminou e os voluntários recolheram as cartelas usadas, uma delas chamou atenção. Atrás da folha de papel, escrita com esforço e letra trêmula, havia uma mensagem singela: “sou grata.”

Era a cartela de Dona Abigail.

Ninguém sabe ao certo por que ela escreveu. Talvez para agradecer pela tarde leve, ou pelo cuidado diário. Talvez por estar viva. Ou, quem sabe, por ter sido finalmente vista como alguém, e não como um peso, um fardo, um nome a mais em alguma lista de problemas.

Porque é isso que tantas pessoas idosas enfrentam: a invisibilidade. Não é só o abandono físico: é o simbólico. É quando os filhos aparecem apenas para levar o que sobrou, para assinar papéis, para sacar dinheiro e pagar as contas. É quando o mundo se organiza para dar prioridade a quem corre, e não a quem caminha devagar. É quando a história de uma vida inteira se resume a um quarto frio e uma televisão ligada.

Mas há luzes que resistem. E há lugares e pessoas que as mantêm acesas.

A história de Dona Abigail não é apenas sobre uma senhora que encontrou cuidado em um lar de idosos. É sobre o que acontece quando a presença substitui o descaso. Quando o olhar é mais importante do que a pressa. Quando uma cartela de bingo vira um gesto de resistência e de afeto.

É também um chamado. Um lembrete incômodo de que o abandono de pessoas idosas ainda é uma ferida aberta. Ainda existem filhos que somem, parentes que exploram, instituições que ignoram, pessoas que violentam. Um dia desses, assistindo a um vídeo de uma idosa que fez uma poesia para expressar o seu abandono, li comentários dizendo que aquela idosa “deve ter sido o cão com todo mundo” e que está colhendo agora o que plantou. 

Esta é a análise rasa de alguém que não conhece ninguém e fala mais sobre como ele vê o mundo do que como o mundo de fato pode ser. Não nego que nossas atitudes e comportamentos de hoje influenciem as relações que teremos no futuro. Mas insisto: nem toda pessoa solitária foi, no passado, arrogante ou amarga. Cada história é única.

Devemos lembrar, também, a existência e a importância das redes de proteção, vizinhos atentos, assistentes sociais e outros profissionais comprometidos, cuidadores que escutam com afeto.

Histórias como a de Dona Abigail nos convidam a pensar em como estamos tratando aqueles que vieram antes de nós. O que estamos ensinando com nossas ausências? Como estamos orientando a nova geração a lidar com os idosos, muitas vezes, e ainda, negligenciados. Porque a velhice, afinal, é destino comum. 

Dona Abigail também venceu o bingo naquele dia. Ganhou o bombom, comeu um biscoitinho, tomou suco e café e, de algum modo, ganhou algo que já era seu: o direito de voltar a existir, a sentir, a agradecer.

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