O Encontro Militar de Mobilização Social, o EMMOS, realizado pela AFAS – Social e Cultura, tem uma característica que o diferencia de uma boa parte dos eventos institucionais. Nele, a farda não encerra um papel, mas revela camadas. É um espaço em que a atuação profissional se cruza com histórias pessoais e com iniciativas sociais que nascem tanto das corporações quanto do impulso individual de quem entende que pode contribuir além do previsto em seu cargo.
Entre essas iniciativas, sempre me chama atenção a qualidade dos projetos apresentados. Alguns já consolidados, outros ainda em expansão, todos movidos por uma combinação de técnica e sensibilidade. Um exemplo é o Voo Azul, em Belo Horizonte, voltado para inclusão e educação de pessoas com autismo. Cultura, esporte e acolhimento se encontram ali de forma estruturada, sob coordenação do sargento Lenine Neves, que também é pai atípico e conhece, por experiência direta, os desafios e especificidades desse universo.
No EMMOS de 2025, porém, um grupo se destacava, não pela hierarquia, nem por formalidade, muito menos por serem melhores que os outros, mas pelo modo como ocupavam o espaço. Eram os representantes do 11º Batalhão dos Bombeiros Militares de Ipatinga. Participativos, curiosos, bem-humorados. Faziam perguntas, comentavam, propunham ideias, observavam o que outras equipes estavam fazendo. Havia, no comportamento deles, uma disposição constante para aprender e para se aproximar. Não que os demais participantes não tivessem este fôlego. Todos estavam imbuídos dos mesmos propósitos.
No encerramento do evento, a sargento Michelle me abordou com a intenção direta de quem sabe o que quer organizar. Queria uma palestra para todo o batalhão, em Ipatinga. Ouvi, agradeci e dei a resposta educada que mineiro costuma dar quando ainda não sabe se aquilo de fato avançará. Um mês depois, o convite formal chegou.
A proposta inicial era tratar de saúde, mas ampliamos o escopo. Falaríamos da vida, das escolhas e do sentido que cada um atribui ao que faz. Temas que influenciam a prática cotidiana de profissionais que lidam com riscos, perdas e urgências.
A viagem a Ipatinga começou cedo, de trem. A organização das mensagens, o cuidado na recepção, a generosidade das militares na minha condução ao evento e a forma cordial como tudo foi conduzido indicavam que ali havia mais que eficiência. Havia atenção.
Duas militares me levaram até o auditório. Naquele dia, as mulheres ocupariam a linha de frente, enquanto os homens participariam das palestras que compunham o evento do Novembro Azul, numa abordagem que ia além da campanha. Fiquei com a impressão clara de que, naquele batalhão, cuidar de quem cuida não é um jargão. É uma prática.
No auditório, o público era grande e atento. Profissionais acostumados a cenários de risco e emergência, mas que agora estavam ali para olhar para si mesmos, um exercício que costuma ser mais difícil do que se possa imaginar.
Falei sobre sentido, sobre escolhas, sobre a vida. E, enquanto eu falava, observava expressões que não cabiam nos rótulos fáceis de heróis ou guerreiros. Eram profissionais experientes, mas também pessoas com preocupações próprias e um cotidiano que mistura vocação com desgaste emocional. É comum que a imagem dos bombeiros seja associada apenas ao ato de salvar vidas. Mas o que nem sempre se percebe é a carga emocional acumulada em quem lida diariamente com vulnerabilidades humanas. A farda protege, mas não isola.
Por isso iniciativas internas de cuidado fazem tanta diferença. E é interessante que o olhar para o público interno deve vir sempre em primeiro lugar. É preciso estar bem para cuidar do outro. O voluntariado ajuda bastante nesta tarefa: o projeto Bombeiros Sêniores, para citar apenas um, voltado para idosos indicados pelos CRAS, é incrível. Os idosos participantes recebem uniforme, têm atividades, interagem com a comunidade e ressignificam sua própria rotina. É, ao mesmo tempo, ação social e política de bem-estar. Uma forma de proteger também pela integração e que, na prática, impacta o voluntário, que recebe ali muito mais que entrega.
Ao final da palestra, vieram as conversas informais. Ronaldo falou do que aprende cultivando a terra que possui. Marcus ofereceu-se para tocar violino em ações voluntárias do Tio Flávio Cultural. Outros compartilharam expectativas e dificuldades. Ali, o que se dissolvia era a distância entre função e pessoa.
Responsabilidade e vulnerabilidade convivem, e cuidar de quem cuida é uma forma inteligente e necessária de garantir que o serviço prestado à população continue sendo sustentado por gente inteira, e não apenas disponível.
Aos homens e mulheres que fazem a instituição avançar todos os dias, fica o reconhecimento devido. Que encontrem, no ambiente de trabalho, condições que favoreçam respeito, diálogo, cooperação e saúde integral, pilares que sustentam não apenas o desempenho profissional, mas o ser humano que merece atenção e a continuidade de um serviço público que a sociedade tanto confia e precisa.