Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

A maturidade é uma conquista

Publicado em 02/09/2022 às 06:00.

Liguei para a minha mãe logo de manhã, querendo saber como ela tinha passado a noite e para informar que eu havia chegado bem de uma viagem a trabalho. Ela, tomando o café da manhã, me falou que estava pensando em fazer um bolo para levar para a sua amiga, que já tinha ganhado alta e estava em casa, sob os cuidados da família, depois que um câncer voltou sorrateiro e mais violento.

Minha mãe está muito abalada com esta notícia, o que não é para menos, mas ela não quer demonstrar tristeza, para não deixar a amiga mais frágil do que está, e se sente impotente, sem saber o que fazer neste momento em que uma precisa tanto da outra. 

Um dia desses uma pessoa disse que minha mãe estava chorando muito numa ligação que fez à amiga. Não chorou diretamente com ela, mas com uma das sobrinhas que atendeu à ligação. Esta notícia chegou à nossa casa e dois familiares se desesperaram, pois é visível a fragilidade emocional da minha mãe.

“Vamos ligar mais vezes para mãe”, dizia um familiar. “Não podemos deixá-la muito tempo sozinha”, dizia outro. “Ela tem que vir morar com um de nós”, acrescentava um terceiro. Minha mãe tem 85 anos de idade, com autonomia e liberdade para dizer aos filhos que não quer ninguém em casa com ela. E, mais ainda, não quer comprometer a sua liberdade indo morar com alguém. Nós respeitamos e a aconselhamos alguns cuidados. 

É péssimo sentir-se abandonado, mas é por vezes saudável ficarmos sós. O médico e psicanalista inglês Donald Winnicott dizia que “é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser achado”. Nós precisamos de um tempo, rápido que seja, para nos recolhermos em nós mesmos.

Um pequeno livro do filósofo contemporâneo Byung-Chul Han, nascido na Coreia do Sul e professor da Escola de Artes de Berlim, chamado “Sociedade Paliativa - a dor hoje” tem me incomodado e incitado reflexões. Ele nos provoca a pensar a nossa relação com a dor. “Conflitos e controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas têm cada vez menos espaço”, diz ele, que mais adiante arremata: “Vivemos em uma sociedade da positividade, que busca se desonerar de toda forma de negatividade”. Byung-Chul nos alerta para uma “anestesia permanente”.

A gente tem que se dar ao direito de viver os nossos lutos, seja pela perda de “alguém ou alguma coisa especial, seja um emprego, um país ou um sonho”, diz Renato Nogueira, carioca, mestre e doutor em Filosofia, autor do livro “O que é o Luto”.

A amiga da minha mãe parece entender isso. E não na teoria, mas na vida cotidiana. Um dia está bem, com muita esperança. No outro se recusa a se alimentar e até mesmo a deixar que troquem a sua fralda. Está consciente e é humana. Se dá ao direito de não ficar posando de heroína o tempo todo. Está doente e vivendo este seu momento de luto, de perdas na qualidade de vida, de cerceamento da sua liberdade de ir e vir, além da nova rotina de remédios e cuidados médicos.

Viktor Frankl, um médico psiquiatra que viveu alguns anos em campos de concentração nazistas, tem uma frase que me intriga muito. Ele disse que “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto uma coisa: a liberdade de escolher sua atitude em qualquer circunstância da vida”.  Esta é uma fala bem estóica, que revela que ainda temos o poder de escolher mesmo quando tudo parece não estar sob o nosso controle. Mas tem um peso maior ao ser dita por um sobrevivente do Holocausto.

Fácil? Nem sempre.

Exigir que a pessoa esteja permanentemente bem em uma determinada situação é podar a sua liberdade. Desejar que ela esteja bem é outra coisa, bem diferente do que cobrar uma postura que a pessoa não quer ter. 

Continuei a conversa com a minha mãe, dizendo que tinha que desligar, pois ainda tinha que iniciar as minhas pesquisas para escrever a minha coluna do jornal e que eu ainda nem tinha decidido o tema da semana.

“Escreva sobre a vida, que é um presente de Deus. E sobre o amor, pois é ele quem sustenta a nossa vida, nos dá forças para enfrentar situações diversas e nos une em família. Eu amo a família que eu tenho e agradeço a Deus todos os dias por isso”, disse minha mãe, me sugerindo a abordagem da semana.

Desliguei o telefone e parei para pensar o que nos dá maturidade para lidar com os nossos problemas. Conheci tantas pessoas que disseram não serem fortes o suficiente para enfrentarem uma doença, mas passaram por ela com dignidade, souberam chorar e fazer piadas, contestá-la e desacreditá-la. Até souberam aceitar que aquilo era o que “se tem para hoje”, como disse uma paciente numa visita que fiz a um hospital.

Crio que a maturidade seja um presente, uma conquista, que nos faz enxergar onde estamos e o que dispomos para desistir ou seguir. 

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