Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Agora! E não só na hora da nossa morte

Publicado em 26/04/2024 às 06:00.

Por onde circulava, ele causava euforia. Nas universidades, onde sempre era convidado para palestrar nos grandes eventos, falava com clareza das ações de comunicação daquela organização para a qual ele trabalhava, dizia do crescimento internacional da empresa e das longas viagens que eram necessárias para que a equipe brasileira alinhasse o pensamento e a cultura com as equipes dos demais países.

Com um paletó desportivo, calça impecável e sapatos caros, ele também podia ser visto em entrevistas televisivas e estampava os jornais de grande circulação. Foram trinta anos de empresa, a maioria deles sendo paparicado. Tinha boas relações com executivos de outras organizações de segmentos diversos. Dirigia a comunicação de uma empresa mineira, presente em vários países, até o dia em que foi comunicada a sua aposentadoria. A empresa fora vendida e queria “sangue novo”.

Com o prestígio que carregava, montou uma consultoria em comunicação empresarial. Chamou os melhores profissionais do mercado e desenhou aquilo que tinha tudo para dar certo em termos de negócios. E por um tempo foi um sucesso. Só que ele não contava com uma doença que chegaria impávida, como “Muhammad Ali”, como canta Caetano, e que o submeteria a uma série de tratamentos. 

Uma rotina de medicamentos fez aquele homem não aproveitar sua nova empreitada, muito menos a sua aposentadoria. Era uma rotina diária em clínicas e laboratórios que o levaram a definhar. Ele se afastou da mídia, das palestras, das pessoas. Os amigos o visitavam, depois só ligavam, depois mandavam mensagens. Todos entendiam que o tempo é um carrasco para muitos e, com tantos afazeres, os que ainda iam foram se afastando. Não que eles devam ser culpados por isso, cada um tem uma vida para cuidar, mas o homem sentia a dor da solidão e do abandono. Logo ele, de agenda cheia, sala cheia, casa cheia. 

O que lhe sobraram foram os livros, que lia incessantemente, talvez por tentativa de fuga. A biblioteca, que antes era de livros de negócios, começou a receber obras da filosofia e que falavam do sentido da vida. Ele também se interessou muito sobre temas ligados à finitude. A doença continuou tirando dele o movimento, a respiração, a vontade de se alimentar.

A visita dos filhos e das netas era regular e eram os melhores dias da sua vida, daqueles que ele sentia que estava próximo do fim.

O motorista da empresa, que o levou para reuniões, palestras, aeroportos, jantares e festas, também se aposentou. Queixava-se da diabetes, do cansaço, da falta de dinheiro. E ria-se todo ao falar dos netos, que moravam com ele e o chamavam de pai. Eram o seu xodó. O motorista tinha tanto hábito de conversar com aquele homem, que para ele era um prazer ir duas vezes na semana visitá-lo, dar uma volta com a cadeira de rodas para que ele pudesse se aquecer ao sol e ajudá-lo a ir ao banheiro.

Um dia, que parecia uma despedida, o homem teria dito ao velho amigo e motorista que teve uma vida feliz, pois fama e dinheiro era de fato o que ele queria. Não reclama de nada. Mas, se alguém perguntasse a ele o que teria feito de diferente, ele responderia, com o aprendizado da maturidade, que a sua vida inteira. “Ninguém largaria as viagens a trabalho e o tanto de reuniões que eu tinha para ser feliz, pois acreditava que aquela era a única felicidade possível. E era, naquele contexto”, dizia.

O que parecia uma despedida de fato foi. No velório, muita gente lamentava aquela morte, os jornais diziam sobre aquele grande homem. Políticos compareceram, executivos, pessoas da mídia. Saudaram aquela trajetória e fizeram o que tinham que fazer: se foram.

Logo após a descida do corpo, de boné nas mãos, chorando, o amigo, e também motorista, estava reflexivo diante daquele tanto de coroas de flores. Os filhos do homem chegaram até ele, para agradecer o carinho dedicado ao pai por longos anos. Um dos filhos tirou do paletó um bilhete, escrito sabe-se lá por quem, mas ditado pelo homem. “Ele pediu para que te entregasse logo após ser enterrado”, disse a filha, chorando muito e abraçando-se ao velho amigo do pai. “E disse mais: para que você não o leia aqui”. 

O velho amigo foi para casa, brincou com os netos, passou um café, sentou-se no alpendre da sua casa, na Grande Belo Horizonte. Olhando para o céu, agradecia a Deus por ter tido um emprego digno e um chefe que o tratava como a um irmão. “Que Deus, na sua infinita bondade, recebesse aquele homem”, orava em pensamento. Seu neto veio correndo, encostou em suas pernas e disse: “pai, eu te amo!” e começou a beijar aquela mão cheia de marcas, que descansava sobre as pernas. O neto que ele tanto amava não era o melhor presente de sua vida. A vida lhe dera outros tantos, cada qual com sua importância incomparável. 

Mais tarde, o velho resolveu abrir o recado. Lá vinha uma citação curta, entre aspas, do russo Liev Tolstói: “um metro e oitenta, da cabeça aos pés, era o que bastava”. E, logo abaixo deste escrito, vinha: “O escritor estava certo. Na hora da morte, é só disso que precisamos. Em vida, fama e dinheiro são ambição pequena. Queira amor, que para sempre ter, há de sempre dar. Foi sua amizade que me fez rico. Te amo, amigo.”

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