Eu nunca havia entrado em um presídio, nem para visitar alguém, muito menos para dar uma aula ou palestra. Sempre imaginei a prisão como um espaço distante, apartado da sociedade e daquilo que consideramos vida cotidiana. Mas um convite inesperado e inusitado mudou essa percepção. Foi a amiga Ana Roberta, que há anos atua no Senac-MG, quem me chamou para uma palestra para um grupo de 120 recuperandos da Apac de Santa Luzia, uma instituição que propõe um cumprimento de pena bastante diferente daquele que estamos acostumados a imaginar.
Eu fui, confesso, sem saber exatamente o que esperava encontrar e como poderia, de maneira prática, contribuir para quem estava ali. E, de repente, me vi diante de uma cena que parecia saída de um paradoxo. Homens vestidos com roupas comuns, não uniformes. Oficinas abertas, cheias de ferramentas cortantes e pontiagudas, mas sem a tensão que costuma cercar a simples ideia de “risco” dentro de um presídio. Espaços para aprender pintura, artesanato, marcenaria. Salas de aula. Gente transitando livremente dentro de um regime de cumprimento de pena que, de tão distinto, parecia improvável.
O impacto foi tão grande que voltei dias depois, sozinho. Precisava entender o que estava acontecendo ali. Porque a experiência não foi apenas visual; foi um choque existencial. Aquilo me dizia algo sobre liberdade, mesmo dentro do cárcere, mas, sobretudo, sobre o poder que a educação tem de mudar realidades e ampliar perspectivas.
A Apac nasceu em 1972, fruto da indignação e do amor do advogado e jornalista paulista Mário Ottoboni, que se aproximou do cárcere por meio de visitas à cadeia de São José dos Campos. Ao ouvir os encarcerados, percebeu que algo precisava mudar. A ideia inicial, “Amando a Cristo, Amarás ao Próximo”, cresceu e se transformou em uma metodologia. Hoje, organizada sob a sigla que passou a significar Associação de Proteção e Amparo aos Condenados, a Apac é referência internacional no que se refere à justiça criminal humanizada.
É um trabalho que, no entanto, enfrenta inúmeros desafios: a falta de recursos, equipes reduzidas, desconhecimento do seu impacto social e a resistência de setores da sociedade que ainda não compreendem o método. Mas, apesar disso, cresce. Cresce sustentada pelo trabalho de centenas de voluntários e pela atuação da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), que acompanha, orienta e fortalece essa rede.
O princípio é simples, embora revolucionário: entender que apenas punir não resolve, é preciso preparar para que o crime não se repita. Isso significa oferecer condições de regeneração e de construção de sentido para uma vida fora do crime. E, nesse processo, todos ganham: o próprio custodiado, chamado nas Apacs de recuperando; a comunidade que o recebe; o Estado, que gasta menos e potencializa o investimento; e a sociedade, que passa a ser mais protegida. Eu estou falando de pessoas que cometeram crimes. Não posso ser irresponsável com quem foi vítima, por isso é preciso olhar para frente, reconhecendo que, se nada for feito, todos sairemos perdendo.
Charles Dickens, no século XIX, já dizia que “aqueles que foram submetidos a essa punição (o cárcere) sem dúvida voltarão à sociedade moralmente insalubres e doentes”. Não por acaso, os índices de reincidência no sistema prisional comum permanecem altos. Como esperar resultados diferentes se insistimos no mesmo modelo punitivo e degradante?
Não se trata, é claro, de ignorar a dor das vítimas, nem de romantizar crimes. A questão é outra: como podemos quebrar o ciclo que produz violência? Como impedir que alguém que já errou volte a errar, não por medo da punição, mas porque encontrou um sentido social?
Angela Davis, intelectual e ativista norte-americana, presa nos anos 1970, costuma afirmar que “uma sociedade sem prisões é uma possibilidade futura realista, mas em uma sociedade transformada, na qual a força motriz seja constituída pelas necessidades do povo, não pelo lucro”. Para ela, o aprisionamento é uma estratégia enganosa, que desvia o olhar dos verdadeiros problemas: racismo, pobreza, desemprego, ausência de educação, falhas no sistema de saúde. E entendo que seja preciso ouvi-la com seriedade.
A Apac, de alguma forma, tenta encarnar essa visão. Não porque proponha abolir as prisões de imediato, mas porque rompe com a lógica da exclusão pura e simples. Ela enxerga na punição uma oportunidade de regeneração, não de degradação. Ao oferecer estudo, trabalho, corresponsabilidade e disciplina, propõe uma chave que abre por dentro.
E aqui me permito voltar a Santa Luzia, à minha infância. Quantas vezes passamos por ruas, bairros, ambientes diversos sem perceber que ali, nos pequenos gestos negligenciados, se plantam as sementes que mais tarde podem florescer em escolhas difíceis, algumas delas criminosas? A reincidência não é apenas falha do indivíduo; é falha coletiva, da sociedade que não protegeu, não acolheu, não educou.
Ao visitar a Apac, percebi que falar de crime é falar de nós. De nossas omissões, nossos preconceitos, nossas falhas como comunidade. Mas também de nossas possibilidades de reconstrução. A cada recuperando que se transforma, um pedaço da sociedade se transforma junto.
Não tenho respostas definitivas para a questão prisional. Ninguém tem. O tema é complexo demais para soluções simplistas. Mas tenho certeza de uma coisa: desprezar a contribuição das Apacs é, no mínimo, leviano. Elas nos mostram que há alternativas viáveis, concretas, palpáveis. E, se há um futuro a ser construído, ele precisa passar por aí: educação, saúde, trabalho, cultura, desenvolvimento humano. A prisão não pode ser um fim em si mesma. Precisa ser, quando inevitável, um espaço de passagem, de transição e transformação.
Para quem deseja se aprofundar no tema, a PUC Minas lançou recentemente o primeiro curso de especialização EAD sobre esta metodologia: “Apac: teoria, método e disposições legais”. É um passo importante para que o conhecimento se espalhe e mais profissionais possam compreender e aplicar essa proposta. Informações pelo link: https://sl1nk.com/JQMwd