Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Apac: uma oportunidade

Publicado em 15/04/2022 às 07:00.

Sentados dentro de uma sala eles já aguardavam a minha chegada. O carro que me levou de uma cidade à outra, no interior de Minas Gerais, atravessou uma chuva torrencial e isto fez com que a gente chegasse com atraso.

Entrei e encontrei os amigos do Instituto Minas Pela Paz que já me aguardavam naquela unidade de cumprimento de medida socioeducativa para menores em conflito com a lei. Fiquei encantado com a educação da equipe, a limpeza dos ambientes, o silêncio respeitoso do lugar, a beleza das casas e dos espaços verdes e com a presença de um cão, o Lord, que nos recebeu amavelmente no portão.

Mas só cheguei ao espaço onde os adolescentes estavam às 16h15, 45 minutos antes das atividades do dia se encerrarem e eles entrarem no momento de higiene pessoal para o preparo para jantar e para desfrutarem das suas atividades de lazer. Dentro da sala, tudo já estava preparado para a palestra.

Comecei pedindo desculpas pelo atraso e que iria cumprir o horário, para não prejudicar a rotina das atividades. O maior dentre eles, em estatura, me disse para eu não ficar preocupado com isso, para ficar “de boa”. Vendo a concordância dos outros 18 jovens, fiquei tranquilo. Iniciei a palestra pensando na frase que alguém me disse, e eu nem lembro quem foi, mas que me incomoda de uma maneira muitas vezes positiva: “todo mundo é filho de alguém”. Esta frase fala muita coisa, pois ao olhar nos olhos deles eu via filhos de alguém, não menores que cometeram crimes.

Eles provavelmente cometeram crimes, estavam ali sendo chamados de educandos, o que é significativo, pois muitos são filhos de alguém que sequer chegou a conviver com eles, uma vez que o crime levou a mãe muito cedo, a droga tirou os filhos de uma família e separou os irmãos, indo uns para abrigos e outro para aquele ambiente.

Lembrei do filme “Além da vida”, em que dois irmãos, gêmeos, viram que uma assistente social batia à porta da sua casa de manhã, provavelmente para vistoriar o comportamento materno e decidir se a tutela dos filhos continuaria com aquela mãe ou não. Enquanto isto, a mãe estava dormindo em um dos cômodos, drogada. Os meninos não pensaram duas vezes, foram até o quarto, vestiram a mãe, puseram sacolas com mantimentos em suas mãos e a colocaram para fora de casa pela porta da cozinha.

A cena emociona, nos faz refletir. Os dois meninos abrem a porta da casa, recebem a assistente social e comunicam que a mãe foi a um supermercado ali perto, mas não demoraria. De fato, a mãe entra na casa, abastecida com as sacolas. Os filhos recebem a autorização de continuarem naquele lar.

Fiz a palestra para aqueles jovens e, ao final, um a um veio dar um abraço. Às vezes, era só um abraço silencioso, outro com algum comentário ou o desejo de que Deus me abençoasse. Eu estava dentro de uma Apac Juvenil, a primeira experiência com adolescentes deste método, que já é notabilizado mundo afora pela ressocialização de homens e mulheres adultos condenados pela Justiça, e que completa 50 anos de existência neste ano.

Funcionários e monitores interagindo com os jovens, o convite feito por eles para que voltássemos mais vezes, um lanche que eles faziam questão que nos servíssemos antes, já que éramos visitas. Um aperto de mão com dor nos olhos, o sofrimento contido, que sei que há vezes em que ele é solto, manifestado em impulsos que pesam as palavras entre um e outro.

Mas, naquele momento, não éramos professor, visitantes, monitores, menores. Éramos pessoas, todos com esperanças bem semelhantes, de conseguirem voltar para casa: eu, para a minha residência; os monitores, para as suas famílias; os adolescentes, de reestruturarem sua vida.

A Apac é uma metodologia que acolhe a todos. Mas já percebi que há um limite de atuação: ela chega até onde cabe ao outro decidir. Se o outro não tem maturidade para novas escolhas, ali ele será trabalhado e fortalecido para isso, mas ele tem que estar “desperto”, “acordado” para que aquela oportunidade o mude onde só ele mesmo pode deixar que a mudança entre.

Durante a visita, abraço um monitor, calmo, tranquilo, que estava ali cuidando daqueles jovens, mas que me conhecia de anos atrás, numa palestra em que era ele quem estava na condição de “menor em conflito com a lei”. Foi um abraço de gratidão mútua.

“O homem precisa, para sua felicidade, não só ter prazer com isso ou com aquilo, mas também esperança, iniciativa e mudança”, dizia o matemático, filósofo e Nobel em Literatura, Bertrand Russell.

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