Outro dia, no fim de uma palestra para educadores, uma professora se aproximou e disse, em tom quase conspiratório:
— Posso te contar uma coisa que me aconteceu em sala de aula?
Balancei a cabeça afirmativamente e ela me contou:
— Um menino da primeira série me perguntou, com a maior seriedade do mundo: “As crianças nascem más?”
Eu e a professora demos uma risada por alguns segundos. Ela esperava talvez que eu respondesse, mas preferi respirar fundo. O que se pode dizer a uma criança que faz uma pergunta dessas? E mais: de onde nasce essa pergunta?
Fui para casa com essa história me acompanhando feito sombra em fim de tarde. Me sentei na sala e comecei a me lembrar das histórias que tantas professoras contam — e das que eu mesmo já vi.
Lembrei da menina que empurrou o coleguinha porque ele não a deixou brincar. Do menino que escondia o lanche dos outros até vê-los chorar. Do garoto que fazia piada cruel com os erros dos colegas. Mas também da menina que dividia os biscoitos. Da filha de professora que corria para ficar com a criança esquecida pelo pai após o horário da aula. Daquela que abraçava quem caía no recreio.
A pergunta ecoava: “nascem más?”.
Me lembrei então de uma cena em uma praia. Uma mãe observava a filha de cerca de dois anos brincar na areia. Uma outra criança pegou a pazinha da menina e saiu correndo. A menina apenas olhou para a mãe. Não chorou. Não gritou. Apenas olhou, como quem pedia ajuda para resolver.
A mãe, calma, se abaixou e disse:
— Você quer a sua pazinha de volta? Então vamos conversar com ele.
Levantou-se, chamou o menino, e os três conversaram. A mãe da outra criança chegou e, com um tempinho de conversas, o menino devolveu a pazinha.
Aquela cena me marcou. Porque ali, no chão da areia, aquela mãe ensinou a filha que as coisas se resolvem com diálogo. Que o outro não é inimigo. A menina não nasceu sabendo disso. Aprendeu ali.
Criança não nasce má. Nem boa. Criança nasce humana. Cheia de vontades, instintos, fome, sono, desejo de atenção. O que ela faz com tudo isso depende do mundo ao redor.
Lembrei das pesquisas que já li. Estudos que mostram que bebês, com poucos meses, já demonstram empatia — como quando choram ao ouvir outro bebê chorando. Ou preferem, instintivamente, personagens que ajudam em vez dos que atrapalham. Não é bondade plena, mas é um indício. Há ali um terreno fértil.
Alguém me disse uma vez que criança precisa de três coisas: afeto, exemplo e limite. O afeto segura a criança no mundo. O exemplo ensina sem palavras. E o limite organiza, não como punição, mas como borda, como margem de rio.
Volto à pergunta do menino: “As crianças nascem más?”
Fico imaginando o que o levou a perguntar isso. Talvez tenha se assustado com um colega. Talvez tenha feito algo de que se arrependeu. Talvez ouviu algo em casa. Ou só estava sendo curioso. Não sei. Acho que, no fundo, o que ele queria saber era:
“Por que alguém faz o mal?”
“Por que dói quando me machucam?”
“Sou mau por sentir raiva?”
Talvez a melhor resposta não seja uma explicação complexa, mas uma escuta simples:
— O que te fez pensar nisso?
E deixar que ele fale. Que conte, do seu jeito, o que está tentando entender. As crianças têm essa coragem de nomear o que os adultos escondem. Elas perguntam o que a gente silencia. E nos obrigam a pensar.
Porque, se formos honestos, todos nós já fizemos maldades. Já ferimos, mesmo sem querer. Já omitimos ajuda. Já fomos cruéis. Já fomos crianças más — ou adultos maus — por alguns instantes. A diferença está em aprender com isso. Em reconhecer. Em ter alguém por perto que nos ajude a entender que não somos só isso.
Então, quando me perguntam se uma criança nasceu má, penso que a pergunta certa é:
Ela foi cuidada com amor?
Foi ouvida?
Teve limites claros e coerentes?
Viu respeito ao seu redor?
Pôde errar sem ser humilhada?
Se a resposta for sim, é pouco provável que “seja má”. Porque a maldade, no sentido profundo, ao meu ver, cresce no abandono, na frieza, na violência contínua.
Claro, há exceções: transtornos, contextos diferenciados. Mas a regra é simples: as crianças refletem o mundo em que crescem. E o nosso papel — como adultos, como sociedade — é fazer desse mundo um lugar mais possível.
Naquela noite, antes de dormir, comecei a escrever uma carta com respostas que eu sempre busquei:
“Querido, você não é mau por sentir raiva. Nem por querer o brinquedo só pra você. Você está aprendendo. E tudo bem. Com o tempo, com os outros, com quem cuida de você, você vai entender que o mundo é feito de muitos. E que podemos ser bons uns com os outros. Mesmo quando erramos.”
Ao refletir sobre tudo isso, a carta virou esta crônica - uma tentativa adulta de responder à pergunta que uma criança me emprestou, por meio de uma professora. Uma pergunta que, na verdade, deveria nos acompanhar pela vida inteira. Não para nos culpar, mas para lembrar: a maldade se constrói. E o bem também.