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Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

Coisas que os olhos não veem

Publicado em 20/06/2025 às 06:00.

A mãe tinha vinte anos quando soube que estava grávida pela primeira vez. Descobrir-se mãe pode ser um susto e uma promessa ao mesmo tempo. Só soube que eram dois no momento do parto. A surpresa foi imediata, como são muitas das coisas que a vida traz sem manual de instruções.

A alegria logo dividiu espaço com a preocupação. Os médicos disseram que os filhos nasceram com uma condição rara, chamada “Síndrome do Olho de Gato”, que comprometeria a visão até a perda total, a qualquer momento da vida deles. Uma notícia dessas, num quarto de hospital, com dois bebês nos braços, deve ter feito o tempo parar.

A família, de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, sem grandes recursos financeiros, buscou fazer o que estava ao seu alcance. Não fizeram dos meninos reféns da condição. Não quiseram protegê-los impedindo de ganhar o mundo. O caminho foi outro: dar a eles condições para caminhar sozinhos. 

Houve exageros, claro. O irmão mais novo, desde pequeno, foi encarregado de ser o guia deles. Era ele quem deveria ficar colado nos dois, garantir que estivessem seguros e amparados. Mas se houve exagero, houve amor também. Muito.
Ricardo e Romário Fot aprenderam. Sempre atentos, abertos, buscando entender o mundo e participar dele. Fui conhecê-los numa palestra que dei no Senai de Betim.

Estavam entre os alunos. A palestra era sobre empreendedorismo, mas os dois pareciam mais interessados em ouvir sobre caminhos, escolhas, possibilidades.

Ao fim da conversa, vieram me procurar. Disseram que queriam ser palestrantes. Falaram com entusiasmo e uma certa urgência, como quem já sabe o que quer e está apenas pedindo uma bênção.

Contei a eles que o caminho não era simples. Era preciso ter repertório, experiência, se comunicar bem. Falei que era importante montar um roteiro, preparar os slides, dar um nome à palestra, ensaiar. E, principalmente, começar oferecendo palestras voluntárias, para aprender com a prática. Em escolas, ONGs, qualquer lugar que abrisse as portas.

Poucos dias depois, começaram a me mandar mensagens com propostas de títulos e temas. Os nomes eram muito técnicos, puxados para o lado acadêmico. Sugeri então um título mais direto: “Coisas que os olhos não veem”. Eles não gostaram muito, mas toparam.

Esse título não era só um trocadilho. Falava de muitas camadas da história deles e de tanta gente. Coisas que nem todo mundo vê: o esforço da mãe, o apoio do pai, a dedicação da família, do movimento que não precisa de medalha para fazer sentido.

Falava também daquilo que se passa fora dos palcos, nos bastidores, dos holofotes. As dificuldades que nem sempre são visíveis a todos, mas que moldam quem a gente é. A partir dali começamos uma pequena jornada. Marcamos palestras em escolas públicas e em unidades prisionais. Eu abria as apresentações, depois deixava que contassem suas histórias e dessem seu recado. Falavam das dificuldades, dos estudos, dos campeonatos de tecnologia que disputaram pelo Senai, dos aprendizados, dos encontros com pessoas que foram essenciais em suas vidas. Falavam com clareza e envolvimento. As pessoas ouviam com respeito.

Na primeira vez que estivemos juntos pessoalmente para uma atividade voluntária, combinamos de nos encontrar no centro de Belo Horizonte. Eles desceriam de ônibus na Avenida Amazonas, próximo ao edifício JK. Fui de carona com a Nayara Reis, que trabalhava no Senac. Ao chegar, os encontrei sentados na escadaria do prédio.

Cumprimentei, trocamos umas ideias rápidas e perguntei: “Como vocês andam?” Eu queria saber se eu deveria pegar em seus braços ou eles nos meus. Um deles respondeu, sorrindo: “A gente anda com as pernas mesmo”. Aquilo me desarmou. Rimos. E seguimos.

Indo em direção ao carro, eu estava no meio, com cada um segurando um dos meus cotovelos. As bengalas iam à frente, tateando o caminho. As calçadas estavam ruins, cheias de buracos. Um deles comentou, no meio do trajeto: “Se cada pessoa cuidasse da sua calçada, a vida seria melhor para todo mundo, né?”. Guardei essa frase e uso até hoje nas minhas palestras. Ao fazer o que precisa ser feito, você não ajuda apenas a si mesmo, mas também ao coletivo como um todo.

Agora, em junho, os dois lançaram o primeiro livro, justamente com o nome daquela palestra inicial: Coisas que os olhos não veem. O evento aconteceu no Centro de Referência da Juventude, em Belo Horizonte e a apresentação foi feita pelo bibliotecário Wander, que também é cego. Depois, chamaram a família à frente. Foi um dos momentos mais emocionantes. Falaram do pai, que sempre desejou que eles fossem livres. Da mãe, que fez o que pôde — e até o que não podia — para que os filhos fossem capazes de seguir. Chamaram também a primeira professora de Braille dos meninos: Zenísia. Ela chegou chorando. Emocionada, disse que ama a educação. E ali estava, diante de dois ex-alunos que deram sentido àquilo que ela ensinou.

Estavam lá as esposas dos dois e a filha de um deles. Todos acompanhando, com orgulho no rosto. A sensação de que valeu a pena. Que todo esforço teve direção.

Fazia tempo que eu não os via. E ali, no lançamento do livro, percebi que continuam firmes. Seguem crescendo. Pela educação, pela vontade, pelo apoio que receberam. Mas há algo que me parece ainda mais essencial nesse percurso, e que eles têm de sobra: a gratidão.

*Para falar comigo: www.tioflavio.com.br e no instagram @tioflavio

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