Tio FlávioPalestrante, professor e criador do movimento voluntário Tio Flávio Cultural.

De novo, um novo dia!

Publicado em 20/05/2022 às 06:00.

São cinco horas da manhã. O celular despertou primeiro e, cinco minutos depois, a assistente virtual, que cantou a noite inteira enquanto eu dormia, começa com sutileza a me lembrar que não dá mais para ficar deitado.

O difícil não é nem acordar. O quase impossível é colocar os pés no chão. Depois disso, tudo flui.

Tenho pouco tempo. Não ter cabelo facilita, pois ainda tenho que escovar os dentes, passar um café e colocar dentro da mochila os pertences que vou precisar e que fui, no dia anterior, jogando num canto para não esquecer nada para trás. 

Em Belo Horizonte está um “gelo”. A promessa é que esta seja a semana mais fria dos últimos tempos. Faltam 20 minutos para as seis da manhã. O ônibus passa a avenida Olegário Maciel, em frente a uma escola estadual de mesmo nome, às 6h20.

Desço correndo e passo pelo recepcionista do meu prédio que me diz: “correndo cedo assim?”. Eu ando como se tivesse rodas nas pernas. Esses dias li um livro sobre solidão que fala muito sobre as pessoas nas grandes capitais, andando depressa, com o olhar focado na tela do celular, cabisbaixas, sem ver quem passa por elas. Foi nessa leitura que me vi assim também.

Apesar de ser antes das seis da manhã, a rua já está frenética, os ônibus estão cheios, as lanchonetes movimentadas, cheirinho de café e pão de queijo para todo lado. Eu vou a pé até o ponto porque já tentei chamar um carro de aplicativo que, cedo, numa distância não tão relevante - para quem está de carro - os motoristas não pegam a corrida e eu perco o tempo. Assim, saio em disparada.

Desço a Olegário Maciel, atravesso a Praça Raul Soares, passo em frente ao Mercado Novo e pronto, já estou lá.

Às 6h20 o ônibus estaciona. Ali param as linhas que vão para Betim, Igarapé, São Joaquim de Bicas e por aí vai. Descem algumas pessoas e a gente entra. Cumprimento o motorista, mas acho que ele não ouviu, só me devolveu o troco. Pensei no livro sobre solidão, mas não estou nem aí, vou cumprimentá-lo todo dia e deixar que ele escolha se me cumprimenta ou não.

O ônibus demora mais de duas horas para chegar aonde eu preciso: o ponto final, em São Joaquim de Bicas, em frente a uma penitenciária e dois presídios. No caminho, já fora de Belo Horizonte e com o ônibus escaneando todas as ruas do munícipio a que nos destinamos, os passageiros vão descendo e agradecendo ao motorista, aos gritos amistosos. Ele também não os responde. Entendi que a não resposta já é a resposta e fiquei mais feliz.

Nunca andei num ônibus que pudesse pular tanto. E não é problema das ruas, é do veículo mesmo. No fundo, a rampa para acesso de pessoas com deficiência tem alguma peça solta, que bate ininterruptamente.

Finalmente faltam três pontos para a chegada. Resolvo saltar antes, para passar numa padaria que tem um pão francês bem crocante. O café, servido de uma garrafa, está quentinho, saindo fumaça. Na padaria todos já me cumprimentam como se eu fosse um frequentador assíduo.

A menina que faz meu sanduíche já sabe que é para tirar o miolo do pão e não passar manteiga. Eu adoro coisas desse tipo, são tão simples, mas geram uma identificação, um acolhimento. 

Acabo o meu cafezinho e vou caminhando até as unidades prisionais. Em dez minutinhos estou pronto para um dia de atividades. Lá dentro, passando por uma das celas, um preso pergunta: “Já tomou água hoje, Tio Flávio?”. Eu sempre esqueço a garrafinha e fico horas sem tomar água, falando o tempo todo de cela em cela. 

Chega o almoço, os presos vão passando pelo corredor para “pagar” a alimentação. O Policial Penal me pergunta: “Não vai almoçar hoje, não? Assim você não dá conta”. Para dar tempo de passar em todos os pavilhões, eu levo uma fruta para comer, mas ela fica lá na administração. Até subir lá, comer e voltar, perco 30 minutos. Respondo ao policial que vou comer quando sair. Nesta hora um preso me chama e me dá cinco biscoitos e outro prepara um suco para mim. Não aceito, pois sei que aquilo fará falta para eles, mas já fui avisado que é desfeita. Então, agora aceito.

À tarde, quase perto do horário de pegar o ônibus de volta, ainda filo um “dedinho” de café, acabo o que tenho que fazer, saio do corredor das celas e vou para a área chamada “gaiola”, de onde dou um grito: em 15 dias estou de volta, até mais, pessoal! Aí só ouço os gritos: “Com Deus” e outro: “Dá um abraço na sua coroa (mãe)”.

O médico e psicólogo Dr. Gabor Maté diz que “trauma significa fundamentalmente uma desconexão do ser”. Em outro momento ele diz: “As crianças não se traumatizam porque se machucam. Elas se traumatizam porque ficam sozinhas com as suas feridas”. Lidar com gente envolve uma complexidade, obviamente, mas é na simplicidade das relações que as dores mais complexas se acalmam.

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